
Vanhoozer concebe sua obra em uma estrutura tripartite, inspirada nas metáforas de Pedro sobre a vida corporativa da igreja (adoração), sua vocação (testemunho) e como ela se comporta entre os de fora da própria comunidade (sabedoria). Nessa estrutura estão contidos artigos produzidos ao longo de sua vida, que demonstram um fio condutor muito bem amarrado com a tese de teodrama desenvolvida por ele em outros livros. Isso demonstra como o seu pensamento se manteve coeso ao longo dos anos e lhe proporcionou as bases para investigar os mais diversos assuntos que aparecem no livro, indo desde artes até bioética.
A contribuição de Vanhoozer, nesta e em outras
obras, é perceber as Escrituras como algo mais que um conjunto de proposições
cognitivas, percepções sensoriais e líricas, e estruturas culturais-linguísticas.
Como bem aponta o tradutor Fabrício Tavares de Moraes no posfácio, Vanhoozer “propõe
que o cânon bíblico apresenta um teodrama que abrange também o drama humano,
seja por meio da encarnação, seja porque encena as venturas e desventuras de
homens comuns (Abraão, Davi, Jó) e de todo o povo marcado pelo martírio
(testemunho): Israel e a Igreja.” (p.329).
Vanhoozer se mostra muito
preocupado com a posição da teologia nas igrejas hoje. Em certa parte ele
comenta que apesar de a maioria dos adolescentes dos EUA ainda sejam membros
ativos de agremiações religiosas, eles também são inacreditavelmente
inarticulados quanto à fé, às crenças e práticas religiosas, e seu sentido ou
lugar em sua vida. Isso não significa falta de fé ou descrença em algumas
doutrinas. Ao contrário, os adolescentes possuem uma teologia do tipo “deísmo
moralista terapêutico”. Em um gracejo, o autor diz que o credo deles poderia
ser assim:
Creio em Deus, o Criador, que governa e supervisiona a vida sobre a terra. Creio que ele deseja que as pessoas sejam boas e ajam com gentileza entre si (o princípio moralista). Creio que o objetivo principal da vida é ser feliz e sentir-se bem a respeito de si mesmo (o princípio terapêutico). Creio que as boas pessoas vão para o céu, e que quase todos são bons (ou ao menos simpáticos). Deus seja louvado (E eu também). Como é agora, talvez seja para sempre (quem sabe?), e pelos séculos dos séculos virtuais. Amém. (p.57)
Assim,
ele aconselha:
Não basta possuir a visão elevada das escrituras, nem mesmo ler a Bíblia com regularidade. Para praticar a autoridade bíblica – ser bíblico na vida e no pensamento -, é preciso lê-la formativamente, isto é, de modo que ela molde nossa visão da verdade, nossos valores e nossas interações com os demais – o modo como vivemos. (...) [o modo de se fazer] essa leitura profunda, participativa, é a “ingestão”: praticar o sola Scriptura significa “devorar” esse livro. (...) ‘Peguei o livrinho da mão do anjo e o devorei’ (Ap 10.10). Ezequiel e Jeremias também eram biblívoros: ‘Como esse rola’ (Ez 3.1; Jr 15.16). (...) Praticar a autoridade bíblica envolve mais que valorizá-la da boca para fora. Antes, significa comer, orar e amar as canções, narrativas, leis e outras partes das Escrituras.” (p. 103.)
Vanhoozer tem uma paixão pelas
Escrituras que transborda conforme vamos lendo seu livro.
No capitulo “Exaltar a Deus nos
cânticos”, Vanhoozer trata do lugar da beleza na Bíblia, nas nossas igrejas e
na nossa vida. Como ele chama atenção, a palavra grega kalos (“belo”) expressa mais que valor estético. É também o reto, o
adequado, o bom, que é apropriado a um ser. A septuaginta usa kalos para
traduzir o hebraico tôv (“bom,
aprazível, agradável”) no refrão do primeiro capítulo de Gênesis: “Deus viu
tudo o que havia feito, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto
dia” (Gn 1.31), talvez com o sentido de “boa forma” (isto é, belo).
Para
o autor, vivemos em tempos de uma “tragédia da imaginação faminta”, a despeito
de termos as mais avançadas tecnologias de construção de imagens. A arte não pode
ser explicada pela ciência e nem ser medida de acordo a juízos de utilidade.
A arte, ‘essa atividade humana que ultrapassa o útil para incorporar a alegria ou a dor do ser humano, em cores, formas e sons alusivos’, é um dos principais meios de cultivo. A arte, música e literatura (para não mencionar a dança, a arquitetura e o cinema) comunicam indiretamente visões sobre a vida e amor humanos, sobre o sentido da vida no cenário cósmico. As culturas, pois, cultivam o espírito humano, encorajando certas formas de vida em lugar de outras.
Por isso,
numa passagem belíssima, Vanhoozer comenta que
a música carrega nossos sentidos do que significa “estar no mundo” – condicionados e indeterminados pelo tempo e pela cultura. Ora, estar-no-mundo envolve a apreensão do ambiente e de nós mesmos: de nosso lugar no mundo e de nossas possibilidades. A música transmite, então, não tanto uma mensagem e sim um estado de espírito. Martin Heidegger prefere falar em ‘estado de espírito’ que em ethos, mas os dois termos se referem à percepção de alguém que está-no-mundo. O termo alemão para ‘estado de espírito’ (Stimmung) refere-se originariamente à afinação de um instrumento musical, o que talvez seja a razão para Heidegger também falar da importância de as pessoas ‘estarem afinadas’ com a existência. Entendido nesse sentido existencial mais profundo, o ‘estado de espírito’ envolve a percepção do eu, a percepção do mundo e do relacionamento entre ambos (a ‘afinação’). Visto que a música sempre carrega consigo alguma percepção do estar-no-mundo, toda música é música de ‘estado de espírito’. (p. 142).
O capítulo
que mais me chamou atenção e que mostra o poder da articulação entre intelecto
e apologética cristã de Vanhoozer é “Aperfeiçoamento na catedral”, em que ele
lida com as implicações éticas do melhoramento genético. Pelo meu próprio
interesse em filosofia da tecnologia, fiquei bastante surpreso com as
excelentes referências bibliográficas de Vanhoozer neste capítulo.
Para Vanhoozer, o modelo
paradigmático da narrativa de tentação dos humanos em busca de alcançar o
controle do mundo, do futuro e do próprio destino é a história de Fausto, o
homem que fez um acordo com o demônio em troca de conhecimento. A disposição
dele para negociar sua alma e satisfazer o desejo de conhecimento é a
matéria-prima para diversas histórias e músicas. O adjetivo “fáustico” passou a
descrever a pessoa cuja busca obstinada pela autorrealização conduz à
destruição diabólica.
Vanhoozer lembra de que Jacques
Ellul alertou contra a tendência de fazer da técnica o conceito supremo para compreender a existência humana: ‘Neste
ponto o próprio homem torna-se objeto da técnica’. (the technological society,
p. 22). “A tecnologia tende a moldar seus usuários à imagem das ferramentas que
portam: para alguém com martelo, o resto é prego; para alguém com a
neurociência, tudo o mais é engenharia bioquímica. Para os paladinos das
tecnologias de aperfeiçoamento, o Epiginosko
[um droga de melhoramento cognitivo] e similares representam a prova de
apoio para a afirmação de que ‘os bioengenheiros provavelmente controlorão o
futuro dos homens enquanto espécie.’ A promessa tácita – seremos mais tarde
como Deus (Gn 2.5)” (p. 275).
Todo o argumento do autor com
relação à tecnologia do aperfeiçoamento, a movimentos transhumanistas se
encontra no fato de que eles não são fenômenos puramente bioquímicos,
mas um ideal filosófico e cultural, um subproduto peculiar e distintivo da modernidade. A ideia de que os avanços tecnológicos salvarão a humanidade é uma falsa esperança procedente de um falso diagnóstico. Embora algumas tecnologias (e.g. os óculos e a aspirina) sejam exemplos adequados de mordomia sábia (já que visam restaurar em vez de reformular o funcionamento adequado), o caminho do aperfeiçoamento cognitivo farmacêutico é equivocado no que diz respeito ao fim e aos meios. Buscar essas vantagens equivale a pregar uma salus difererente, marchar segundo a cadência de um evangelho diferente, representar cenas de outro drama que não o de Jesus Cristo (p. 296).
Assim, por essas breves exposições
do livro de Vanhoozer, percebemos que estamos diante de uma excelente e
fundamental obra, que apela à um aprofundamento, à um chamado a cultivar a
mente e a espiritualidade cristã mais aprofundada. Como a metáfora utilizada
por ele, devemos nos tornar Biblívoros: “devorar” a Bíblia e assimilá-la por
inteiro. Somente assim teremos respostas bíblicas para os principais problemas
atuais.
Grande iniciativa da Editora Monergismo.
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