
Esse novo
episódio de Black Mirror do canal de streaming Netflix, lançado em 28 de dezembro de 2018, apesar de não
trazer nenhuma inovação no sentido de se poder escolher os caminhos à seguir no
desenrolar da história (na própria Netflix há desenhos infantis com essa
possibilidade), traz uma discussão bastante interessante da tecnologia, algo
que sempre foi a proposta do programa.
Quem assistir
e não levar em consideração essa crítica, pode se frustrar, como podemos perceber
por comentários na internet. A própria impossibilidade de se seguir certos
caminhos em determinados momentos, caindo em um looping eterno, faz parte da
crítica, como comentarei à frente. A minha resenha do filme vai ser baseada
exatamente nessa crítica e um breve esboço da filosofia da tecnologia proposta
por Black Mirror, que culmina nesse episódio, elementos que raros textos
exploraram.
O
título do episódio, “Bandersnatch” faz referência ao jogo que Stefan está desenvolvendo
baseado no livro de mesmo título, escrito por Jerome F. Davies. O livro é um
catatau, com diversos caminhos para se escolher no desenvolvimento da
narrativa, bem no estilo de livros “Escolha a sua própria aventura”, em que
você, dependendo das escolhas, pode chegar à dezenas de finais diferentes (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro-jogo).
Eu curtia muito esse tipo de livros na minha infância.
O
título Bandersnatch também faz referência à uma criatura presente nos livros de
Lewis Carroll, como por exemplo, em “Alice através do espelho”. Essa criatura
pode ser encontrada no mundo através do espelho, tendo muitas implicações, uma
vez que “espelho” é muito importante no episódio e também em toda série, como o
seu nome aponta.
O termo Black Mirror, quando
relacionado à tecnologia, se refere à tela escura dos aparelhos quando estão
desligados. O criador da série, Charlie Brooker, diz que
"Qualquer TV, qualquer LCD,
qualquer iPhone, qualquer iPad – ou algo assim - se você apenas olhar para ele,
parece um espelho preto, e há algo frio e horripilante nisso, e por isso foi um
título tão apropriado para o show. "
A premissa de todo seriado é que
a tecnologia pode espelhar e até amplificar os aspectos mais negros da natureza
humana. Aqui podemos perceber a filosofia por trás de cada episódio de Black
Mirror: um grande determinismo-pessimista tecnológico, que choca quem começa a
assistir desde os primeiros episódios.
Assim, “Bandersnatch” pode querer
inferir que há algo além, “Através do espelho”, do que meramente os episódios
que assistimos em Black Mirror. Inclusive, a realidade se apresenta mais
complexa, quando vemos referências à alguns episódios passados como meros jogos
de vídeo-game (Ver Metalhead e Nosedive). A mensagem em “Alice através do
espelho”, é que não podemos mudar o passado, mas aprender com ele e evitar
erros futuros. É a mesma ideia que a psicóloga fala para Stefan em certo
momento. Trata-se de um mundo espelhado ao do país das maravilhas, onde tudo
ocorre ao contrário. O que os escritores de Bandersnatch, e de fato, de toda a
série, parecem nos querer apontar é um mundo distópico extremamente pessimista,
onde as consequências da tecnologia são levadas ao seu extremo. O aplicativo de
dar notas às pessoas em “Nosedive” parece bobo no começo, mas leva à eventos
catastróficos para a personagem principal, em sua busca hedonística.
Uma curiosidade: os eventos do episódio começam em 9 de julho
de 1984 e esta não é uma data aleatória. Houve um jogo real chamado
Bandersnatch, mas ele nunca foi lançado. Foi criado por uma companhia de
Liverpool, Inglaterra, chamada Imagine Software que faliu cedo. Na data em que
inicia o episódio, a empresa foi oficialmente liquidada. (https://www.mirror.co.uk/film/black-mirrors-bandersnatch-game-real-13785695).
Bom, mas e quanto à filosofia da
tecnologia de Black Mirror apresentada em Bandersnatch?
Em diversos momentos do episódio
ouvimos a ideia de que o livre-abítrio é uma ilusão. A própria opção dos
escritores deste episódio em deixar as pessoas escolherem para onde vai a
história brinca, ironicamente, com essa ideia. Parece que temos opção, mas
muitas vezes caímos num looping, e temos que voltar e escolher a única opção possível
para continuar. Na verdade, em nossa sociedade tecnológica, parece que temos
escolhas, mas muitas vezes as opções recaem em duas ou mais possibilidades.
Comprarei iPhone ou Samsung? Posso decidir não participar em redes sociais? Não
ter email? Ser um Theodore Kaczynski, o unabomber, e viver de forma alheia ao
desenvolvimento tecnológico?
Muitos filósofos da tecnologia
vão dizer exatamente que não há escolhas; a tecnologia decide por nós. Jacques
Ellul, filósofo e sociólogo da tecnologia e quem eu considero a base filosófica
de Black Mirror, aponta que não interessa o que queremos da tecnologia; se
existe a possibilidade de algo ser produzido, ele será. A tecnologia determina
nossa vida e, quando surge uma nova tecnologia, somos mudados e moldados em
função dessa tecnologia. Veja-se como exemplo a prensa mecânica de Gutemberg.
Antes dela, a leitura era algo comunal. Poucas pessoas sabiam ler, os livros
eram raros, manuscritos e caros, assim, as leituras eram feitas em voz alta, em
grupos. A medida em que a prensa foi sendo implementada, as pessoas passaram a
ter mais acesso aos livros, agora relativamente baratos. A leitura tornou algo
individualizado.
Outro exemplo: as mídias sociais.
Elas determinam a maneira como nos comunicamos: de maneira rápida, curta e
automática, estabelecendo o que consideramos ser uma comunicação efetiva. A velocidade
da informação é estonteante, e queremos respostas no mesmo ritmo. Ao longo dos
diversos episódios de Black Mirror vemos a degradação dos relacionamentos
pessoais em função da aplicação da tecnologia. É uma visão bastante pessimista
e diversas pessoas não concordam, tanto que o seriado e também autores deterministas
como Ellul, não são unanimidades. A visão das consequências que a tecnologia
mal usada pode acarretar é algo que nós não estamos dispostos a aceitar.
Mas a mensagem de Black Mirror e
de filósofos deterministas, não é uma mensagem ludista, de que devemos destruir
nossas tecnologias, é de que devemos cuidar com os excessos de seus usos, buscando
que nossos aparelhos reflitam o que de melhor há na natureza humana, e não o
pior.
O próprio looping no episódio de
Bandersnatch, quando não conseguimos avançar devido à opções restritas nos
aponta que o futuro tecnológico não é tão brilhante e com opções infinitas e
maravilhosas. Na sociedade tecnológica temos certas opções limitantes e elas
muitas vezes não nos levam à lugar algum. Há uma ilusão de liberdade que nos
leva a aceitar o que tecnologicamente nos é oferecido.
Jacques Ellul em diversas obras
comenta a ilusão de liberdade presente na busca do homo technicus, um ser que
não sobrevive sem inovações tecnológicas. O que seria do homem sem suas
ferramentas? A busca humana por criar tecnologias que lhe traga conforto e alívio
de trabalho se transforma, na sociedade tecnológica, em uma busca de domínio
sobre outros homens. As redes sociais querem ter controle sobre sua vida e a
própria Netflix usa as escolhas dos usuários para saber que seriados e filmes
fazem mais sucesso. Em um dos finais de Bandersnatch [spoiler alert], a busca
do telespectador da Netflix por enredos mais emocionantes, com violência e ação,
é parodiada.
Você pode ter uma ilusão de
liberdade ao escolher um eletrônico, ao escolher até o que assistir no amplo
catálogo da empresa de streaming, mas, no fim, se se examinar com atenção, o
que lhe resta são possibilidades limitadas. Alguém decidiu por você quais são
as opções e escutar a música “x” ao invés da “y”, como no episódio, não é a
maior das liberdades.
Algumas vezes na história, os seres
humanos se insuflam na busca por autonomia e tem a ilusão de que possuem o
controle de suas vidas. Veja-se o exemplo antiquíssimo de Babel, o exemplo
maior de autonomia. Construiu-se uma torre alta, buscando unificação e
autonomia, mas no fim o que acontece são desentendimentos.
A busca atual por transcender os
limites humanos, usando a ciência e tecnologia como ferramentas também recai no
mesmo mote babeliano: o homem buscando autonomia face às limitações da
natureza. Só que ele não sabe realmente aonde isso vai dar, podendo acarretar em
seres deturbados, como a versão reconstruída de Ash, que morre no episódio “Be
right Back” da segunda temporada. O Ash reconstruído não é o mesmo Ash de
antes; algo está faltando. Não sabemos as implicações à longo prazo de nossas
tecnologias.
E é isso que os escritores de
Black Mirror e filósofos como Jacques Ellul estão querendo apontar. A liberdade
conquistada na sociedade tecnológica é uma falsa liberdade; se confiarmos
plenamente de que os tecnólogos e cientistas sabem exatamente para onde vamos, sem
nos importarmos com a ética, estamos fadados à sermos dominados pelas opções
que a tecnologia faz.
Seremos como Pac Man, que pensa
que com sua liberdade consegue sair do labirinto, mas na verdade está condenado
a viver em uma realidade que se repete infinitamente. Como romper o ciclo?
Talvez dando menos importância à tecnologia como um valor em si, e colocando
valores humanos à frente: a tecnologia deve servir ao ser humano e não o contrário.
Podemos ou não concordar com a
filosofia de Black Mirror e os filósofos tecnologicamente deterministas, mas
sua mensagem é premente: se continuarmos focando na tecnologia como um ídolo
que nos liberta das amarras da natureza, estaremos condenados à um futuro
distópico. Ou podemos atravessar o espelho e viver em um mundo para além da
tecnologia; não sem tecnologia, mas em um mundo que contenha tecnologias que
espelhe o melhor que há no ser humano. Precisamos dos pessimistas para nos fazer
escolher o caminho certo. Analisando dessa forma a série, vejo Bandersnatch
como o culminar da filosofia de Black Mirror, onde cada detalhe serve para
apontar sua mensagem. Um episódio fantástico pra se rever diversas vezes e
refletir.

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