Muitos questionamentos acerca da interpretação da passagem de Marcos 12. 13-17, em que Jesus responde a pergunta sobre se é permitido pagar tributo à Cesar ou não, tem surgido ao longo dos anos. De fato, há até hoje muitas confusões com relação a afirmação de Jesus. Portanto, apresento aqui algumas idéias e interpretações procurando esclarecer um pouco esta passagem. Faço isto me apoiando num artigo chamado "Jesus, a dívida externa e os tributos romanos" de Uwe Wegner, professor da Escola Superior de Teologia em São Leopoldo/RS. O artigo foi publicado num importante livro "Economia no mundo bíblico. Enfoques sociais, histórics e teológicos" organizado por Inovi Richter Reimer e publicado pela Editora Sinodal em parceria com o CEBI, em 2006. Pela qualidade do estudo, a seguir apresento um resumo deste artigo.
Já de início podemos partir de algumas perguntas: Os romanos tinham o direito de cobrar tributos dos povos subjugados por eles, como é o caso de Israel na Palestina do século I? Como se posicionou Jesus diante desta questão? Teria ele próprio legitimado a arrecadação dos tributos romanos?
A interpretação usual de teólogos e comentadores costuma ir no sentido de uma respostas afirmativa a tais perguntas, levando em consideração o texto de Mc 12.13-17, em que se lê a frase "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Segundo Wegner, há alguns pesquisadores que clamam por uma interpretação mais profunda do texto, para além dos argumentos favóráveis ao pagamento dos tributos romanos.
Leiamos o texto (Mc 12.13-17):
Enviaram-lhe, então, alguns dos fariseus e dos herodianos para enredá-lo com alguma palavra. Vindo eles, disseram-lhe: "Mestre, sabemos que és verdadeiro e não dás preferência a ninguém, pois não consideras os homens pelas aparências, mas ensinas, de fato, o caminho de Deus. É lícito pagar impostos a César ou não? Pagamos ou não pagamos?" Ele, porém, conhecendo sua hipocrisia, disse: "Por que me pondes à prova? Trazei-me um denário para que o veja". Eles trouxeram. E ele disse: "De quem é esta imagem e a inscrição?" Responderam-lhe: "De César". Então Jesus disse-lhes: "O que é de César. dai a César: o que é de Deus, a Deus". E ficaram muito admirados a respeito dele.
A maioria dos exegetas e comentaristas atuais é da opinião de que este texto é suficiente claro em sua asserção ao pagamento dos tributos romanos. Um primeiro cuidado que devemo ter é com relacionar os tempos de hoje com os do Império Romano do século I. Na época em que Jesus faz a afirmação retida no evangelho de Marcos, o "César", ou seja, o título dos imperadores romanos, era Tibério que reinou de 14 a 37 d.C. Ele deu sequência à série de imperadores romanos que mantinham o território e a nação de Israel militarmente ocupados e subjugados a ferro e sangue. Assim, é absurdo comparar os impostos arracadados por um Estado soberano e livre de hoje com impostos roamos, extorquidos militarmente por um império invasor dos inícios de nossa era.
E mais, como definição básica, os tributos deveriam representar dinheiro pertencente ao povo que, quando muito, governantes são chamados para distribuir e administrar com justiça. Além disso, é bom lembrar que nem todo tributo é legítimo. A maior parte da arrecadação tributária no Brasil, por exemplo, não é feita sobre os que mais têm e ganham, mas justamente sobre os que menos têm e mais precisam dele.
Na verdade, as interpretações que partem do pressuposto de que Jesus teria sido favorável ao pagamento de tributos aos romanos, possuem uma série de contradições:
1. Todos os três evangelistas - Mateus, Marcos e Lucas - são unânimes em constatar que a pergunta formulada a Jesus era, em verdade, uma cilada (Mt 22.15; Mc 12.13; Lc 20.20). Em que consistia a cilada embutida na pergunta: "Devemos ou não dar tributo a César"? A cilada era que, qualquer que fosse a sua respostas, Jesus estaria se antagonizando com grupos de sua época. Se dissesse "sim", teria o povo contra si, já que esse era, em sua expressiva maioria, contrário ao pagamento dos tributos; Jesus seria antipopular. Se dissesse "não", seria considerado como perigoso e subversivo, podendo ser entregue "à jurisdição e à autoridade do governador" (Lc 20.20), o que, normalmente, representava condenação e morte.
Pois bem, o supreendente na reposta de Jesus, que autores normalmente interpretam como representando um "sim", é que ela causa "admiração" do lado dos seus oponentes. Se a sua resposta tivesse, de fato, equivalido a um "sim", seus oponentes não teriam do que se admirar - teriam, isto sim, se alegrado por Jesus ter caído na cilada.
O texto de Lucas, alías, vai um passo adiante e afirma que não só os adversários, mas também o próprio povo percebeu que Jesus não se deixou pegar na armadilha: "Não puderam apanhá-lo em palavra alguma diante do povo; e admirados de sua resposta, calaram-se". Ora, se o próprio povo constata que Jesus não caiu na cilada, então a conseqüência que, forçosamente, devemos tirar é: A resposta de Jesus não pode ter equivalido a um "sim", pois nesse caso o povo teria sido contrário ao mesmo.
2. Na prisão e no processo de Jesus, a questão de sua posição diante dos tribunos retorna mais uma vez. Neste caso, a informação procedo do evangelho de Lucas. Segundo este, os membros do sinédrio que levam Jesus preso a Pilatos apresentam-no ao Procurador romano com a seguinte acusação: "Encontramos este homem subvertendo a nossa nação, impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Cristo Rei" (Lc 23.2).
Seria essa acusação um mero embuste, apresentado para incriminar Jesus? Mas, nesse caso, porque o evangelista não teve o cuidado de apresentá-la como falsa e mentirosa em Lc 23.1ss.? De qualquer forma, a acusação do sinédrio corrobora nossa suspeita de que a resposta de Jesus em Mc 12.17 não pode ter equivalido simplesmente a uma afirmação positiva, um sim.
3. Num outro texto, Mc 10.42-43, há um posicionamento muito forte de Jesus contra a prática dos governantes de seu tempo. Diz ele: "Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as oprimem, e os seus grandes as tiranizam. Mas entre vós não seja assim (...)".
Isto representa um repúdio muito claro à prática política do império. Ora, se Jesus pôde ser tão crítico aos governantes numa ocasião, por que deveria ter siso ele necessariamente conivente com os mesmos num assunto tão delicado como o da cobrança de tributos?
ps: quem quiser se aprofundar ainda mais, não perca a segunda parte deste post.
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