quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Todo o meu caminho diante de mim - C. S. Lewis

 



Encontramos aqui o Lewis pré-cristão; através de suas anotações em seus diários entre os anos de 1922 a 1927, acompanhamos seu cotidiano dos 24 aos 31 anos, numa Oxford pós-guerra que procurava fazer sentido e se reconstruir. Percebemos um cristianismo "latente" ou adormecido em Lewis, uma vez que, tendo sido educado e ainda mostrando a influência da religião, passava por uma fase agnóstica. Pelas páginas de seu "leitário", como ele chamava, andamos em sua companhia pelos caminhos de Oxford, seja à pé, de bicicleta ou de outros meios de transporte. Quase podemos compartilhar com ele de uma boa Guiness num pub local, discutir poesia, literatura, filosofia, religião e outros tantos assuntos. Podemos visualizar "Jack" lendo enquanto caminha, em seu escritório, na biblioteca, memorizando passagens, alternando a leitura de vários livros. 

Também somos testemunhas de suas incertezas com relação à carreira, suas dificuldades no lar e na vida intelectual. Mas também vamos conhecendo os primórdios desse grande intelectual em formação, já leitor poliglota, mas ainda incerto com relação ao que o futuro lhe reserva. 

Podemos perceber resquícios de histórias que seriam muito bem exploradas no futuro, como a "peça de horror" tratando da ideia de uma cabeça funcionando à parte do corpo, o que apareceria no último volume da Trilogia Cósmica, escrita mais de 20 anos depois num contexto de debate filosófico. 

Sentimos um Lewis descobrindo o encantamento da natureza cotidiana enquanto passeia nos mais diversos climas tipicamente ingleses e nos pegamos curiosos com a confusão espiritual desses anos. Descobrimos seu interesse primordial na temática da ética. Dois pontos que surgem de passagem apontam para as alegrias do futuro: a amizade de Tolkien, que num primeiro momento aparece à Lewis como alguém "que precisa de um pouco de sabor" (p. 507) e a "paz e o conforto" apontados no epílogo por Walter Hooper, após a mudança para The Kilns, o feliz lar que Lewis e a Sr. Moore passaram muito tempo. 


Em questões formais, o livro é muito bonito e bem editado, como os outros volumes da Thomas Nelson. A edição original, por Hooper, é cuidadosamente trabalhada, e a versão brasileira, com abundantes notas do tradutor é primorosa. A tradução também está muito boa. 

Um pequeno detalhe que poderia ser diferente: as referências ao apêndice biográfico nas notas de rodapé ficaram carregadas e distrai a leitura desnecessariamente. Um asterisco ao lado do nome, no corpo do texto faria o trabalho.


Enfim, é uma ótima adição aos fãs e estudiosos que querem aprofundar na formação intelectual de Lewis anterior à sua entrada como professor em Oxford. Mais uma grande edição à coleção de livros das edições especiais da Thomas Nelson Brasil.


Ed. Thomas Nelson Brasil, 2020, 634 pgs.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Tecnologia e virtude - uma resenha da obra de Shannon Valor

 


“Technology and the virtues” (Tecnologia e as virtudes) de Shannon Valor, que possui o subtítulo “Um guia filosófico para um futuro que vale a pena desejar” foi publicado em 2016. Mesmo focando em filosofia da tecnologia, sua temática de virtudes “tecnomorais”, como chama a autora, é algo que deve ser profundamente refletido por todos nós.

Shannon Valor resgata as ideias de Aristóteles, além de dialogar com Alasdair MacIntyre, entre outros filósofos da tecnologia, comparando com confucionismo e budismo, apesar de se concentrar mais no filósofo grego. Ela traça um histórico da utilização da noção de virtudes na história da filosofia, mas logo focando em sua aplicação para a tecnologia, no que ela chama de "ética da virtude tecnomoral". Segundo a autora, vivemos num contexto de “opacidade tecnológica aguda”, onde não julgamos muito bem os riscos tecnológicos em nosso dia a dia.

            A maior busca do ser humano, segundo Aristóteles, seria a eudaimonia (ora traduzido como alegria, ora como florescimento humano). Para este filósofo, a busca por atingir esse florescimento passaria pelo cultivar de várias virtudes, tais como coragem, honestidade, paciência, amizade, justiça, moderação e sabedoria prática. Em uma passagem que nos remete ao apóstolo Paulo, Aristóteles afirma em “Ética à Nicômaco”:

"Assim, a virtude se distingue segundo esta diferença de fato, dizemos que umas são intelectuais e outras morais; a sabedoria, a inteligência e a prudência são as intelectuais, enquanto a liberalidade e temperança são as morais. De fato, quando falamos a respeito do caráter, não dizemos que ele é sábio ou inteligente, mas que é moderado e prudente: mas nós elogiamos assim o sábio, segundo as suas condições, e dentre as condições, as dignas de elogios são as que chamamos virtudes". (Aristóteles, Ética à Nicômaco. São Paulo Martins Claret: 2015, p. 40).

            Chama a atenção especialmente o conceito de prhonesis ou sabedoria prática que o filósofo grego desenvolve no livro VI. Isto porque esse conceito se parece muito com a ideia de “conhecimento tácito” de Michael Polanyi. Para este autor, nós sabemos mais do que conseguimos falar e muitos dos nossos conhecimentos são adquiridos de maneira tácita, sem conseguirmos explicar muito bem. Isso é comum nas intuições dos cientistas e naqueles que dominam sua arte. Para Valor é necessário construir uma sabedoria tecnomoral e isso se adquire justamente através do hábito, do cultivo dessa sabedoria prática; à isso ela denomina de habituação moral, o que tem profunda ressonância com o que James K A Smith fala em sua trilogia das "Liturgias Culturais". Somos os que amamos logo devemos praticar os bons hábitos. Não vou adentrar aqui, mas o livro “Imaginando o Reino” se dedica mais a falar sobre tecnologia nesse sentido. Tudo isso tem implicações do conceito de sabedoria prática para se pensar em nossas ações face ao mundo tecnológico.

Por exemplo, o conceito de "atenção moral" que Valor desenvolve é algo importante até para nosso cotidiano, quando o celular nos distrai de tudo, da família e das tarefas obrigatórias. Em suas palavras:

"O cultivo do autocontrole [na internet e nos smartphones] requer mais apoio da indústria e das normas sociais, mas também permanece ao alcance de nossas próprias práticas morais, especialmente o hábito da atenção moral. Na verdade, a atenção executiva, a capacidade de perceber o que em nosso ambiente físico ou mental estamos pensando e conscientemente modificar ou redirecionar esse pensamento, é uma parte essencial do autocontrole, envolvendo a capacidade de atrasar a gratificação, moderar nossos impulsos emocionais e restringir ações reflexivas e irrefletidas. Se os novos hábitos de mídia social desafiam nosso autocontrole, isso provavelmente tem muito a ver com nossas capacidades de atenção em ambientes tecnossociais. Como as novas mídias sociais moldam nossos hábitos de prestar atenção moral e as virtudes que esses hábitos promovem?" (Valor. Technology and the virtue).

 

 Uma parte que tem grande impacto na vida tecnológica e que é profundamente influenciada pelo cristianismo (mesmo a autora não sendo cristã e não olhando para essa tradição em sua elaboração) é a da taxonomia das virtudes tecnomorais. É o ouro do livro; ao longo do capítulo 6 são trabalhados elementos tais como honestidade, autocontrole, humildade, justiça, coragem, empatia, cuidado, civilidade, flexibilidade, perspectiva, magnanimidade e sabedoria. Todas essas virtudes são fundamentais para o florescimento humano em nosso mundo dominado pelas tecnociências e comento brevemente cada uma delas.

Honestidade está relacionada a respeitar a verdade, confiança e integridade e em uma era de pós-verdade é algo fundamental, e infelizmente pouco valorizado. O autocontrole liga-se à temperança, moderação e paciência. Humildade se refere também à modéstia, maravilhamento e respeito. Em muitas culturas esta virtude não era valorizada, mas o cristianismo teve uma influência fundamental nesse sentido. Veja o livro de Jonas Madureira, “Inteligência Humilhada”, que traz inclusive uma discussão muito interessante da ética das virtudes e do conceito de phronesis. Em nossas redes falta a humildade para sabermos que não conhecemos tudo e que somos limitados.  

A virtude da justiça, que se conecta com responsabilidade, reciprocidade. Temos muito o que pensar no sentido de que tipo de justiça seria a mais fundamental para o florescimento humano em um ambiente tecnosocial global. Soluções extremas liberais ou socialistas não parecem solucionar problemas de exclusão, crimes virtuais, racismos, propagação de fake news etc. Também em nossas atuações nesse mundo tecnológico é necessária a virtude da coragem, de perseverar e de ter esperança, não caindo em um pessimismo distópico, mas também ser utópico otimista em extremo. Outra virtude é a da empatia, de ser compassivo com os outros, exercendo caridade e compreensão. As telas dificultam o exercício dessa virtude, mas devemos nos esforçar para ver o outro em suas especificidades e dificuldades, e não somente alguém a ser ofendido e contradito. Mas também como engenheiros e produtores de tecnologia, pensar nas dificuldades que os outros possuem para utilizar ou adquirir certo produto. Esta virtude também se relaciona com a virtude do cuidado, do amor e serviço ao outro. Quão forte o cristianismo articulou essa virtude ao longo dos séculos! E também quão pouco os cristãos exercem plenamente essa virtude, e ainda mais quando pensamos em tecnologia.

Quando usamos tecnologia, também a virtude da civilidade é pouco exercida positivamente. Essa virtude se relaciona ao respeito, à tolerância e à amizade. Como formar comunidades políticas eficientes em redes e atuar de maneira boa através do uso de tecnologia. Trabalhar cooperativamente buscando bens tecnosociais é algo que deve ser perseguido. Também, para ter um bom uso da tecnologia é necessária flexibilidade, o ser tolerante com opiniões e posicionamentos de outros, claro que sem negar verdades absolutas. Também é importante ter perspectiva, isto é, ter discernimento do todo moral. A ética da magnanimidade, que é ser nobre de espírito, nos faz atuar com equanimidade, com tratamento igual a todos, mas também ter ambição de buscar sempre a excelência naquilo que fazemos e sermos líderes morais.

Por fim, Valor indica a virtude da sabedoria, que acaba por unificar todas as virtudes tecnomorais, na medida em que a pessoa que possui essa virtude, consegue articular todas as virtudes e as usa para cultivar hábitos que levam ao florescimento humano.     

Na parte 3, a autora vai fazer um exercício de ética aplicada, colocando em prática o que desenvolveu ao longo do livro até aqui, e escolhe quatro exemplos para se trabalhar de maneira mais aprofunda em cada capítulo: as redes sociais, as tecnologias de vigilância, a roboética e o transumanismo.

Muito tem sido falado sobre o impacto das redes sociais em nossas vidas; os cristãos brasileiros precisam refletir muito ainda sobre isso e a ética das virtudes é algo que se encaixa perfeitamente com a nossa cosmovisão. Valor nos alerta para os problemas de vício (que inclusive é o oposto de virtude), de maus usos das redes. Aqui precisamos não somente fazer um bom uso, virtuosamente, mas também procurar nos envolvermos na produção dessas tecnologias. Temos que ter a noção de que as tecnologias não são neutras e, portanto, devemos nos envolver para aperfeiçoar as tecnologias de forma virtuosa. Mas também devemos refletir sobre o bom uso das redes sociais no nosso cotidiano, levando em consideração as virtudes acima elencadas. Valor, demonstrando seu posicionamento mais otimista de moldagem social da tecnologia, diz que as “tecnologias são não tábuas de pedra entregues do alto. Elas são criações humanas maleáveis ​​que podem ser remodeladas a serviço de viver bem se nossa vontade coletiva assim o exigir”.

Sobre “Tecnologias de vigilância”, Valor fala sobre como seria cultivar uma vida examinada e um self tecnomoral em um mundo panóptico, isto é, um mundo onde as câmeras nos filmam e os gadjets acumulam dados à nosso respeito o tempo todo. O desafio é viver em um mundo onde colocamos terabytes de informações sobre nós de forma pública ao mesmo tempo em que não temos espaço para um verdadeiro autoexame.

E num momento em que vivemos a 4ª Revolução Industrial, onde a automação é um grande tema de preocupação, a roboética também se coloca como algo a ser pensado. Os robôs são ou virão a ser agentes morais? Que valores permeiam as relações entre humanos e robôs?

Por fim, Valor trabalha o transumanismo, a busca por transcender as limitações humanas por meio da tecnologia. Nesse último ponto, senti um tecnicismo mais exacerbado, com ela dizendo que não concorda com os bioconservadores nem tanto com os transumanistas, mas acabando indo mais para o lado destes últimos. (Sem falar que ela se baseou na crítica aos bioconservadores em somente três autores, alguns deles não sendo os melhores representantes). Curioso que a autora aqui, foge do que ela mesma chamou de "julgamento prudencial" ao contrapor com a virtude da coragem. Mas coragem não é simplesmente optar pelo transumanismo a-crítico; isso é otimismo irracional.

E também senti que a fundamentação dessa ética das virtudes fica um tanto quanto solta, sem ancoragem, sendo que as pessoas deveriam simplesmente, por sentimento de obrigação, acatar a virtude como ação. Valor fala da necessidade de uma ética das virtudes global (cap. 2). Mas sabemos que o ser humano por livre e espontânea vontade não vai passar da noite por dia a exercer virtudes naturalmente.
Por isso vejo que o cristianismo é a fundamentação dessa ética das virtudes, porque o que a autora coloca como qualidades virtuosas, os cristãos já têm introjetados à milênios, procurando exercitá-las. Claro que a prática cristã nem sempre é exemplar, mas a ortodoxia cristã prega esses elementos. Então, o que acaba ecoando da autora é um humanismo secular que procura virtudes notavelmente incrustada no cristianismo, mas tenta imantizá-las. Não que TODAS as virtudes sejam exclusivamente cristãs, são marcas da boa vida que estão presentes nos gregos; mas vejo que o cristianismo as depurou e as aperfeiçoou, retirando-lhes as imperfeições. Só fortaleceu a noção de que o cristianismo tem muito a informar à uma filosofia da tecnologia.

É um livro excelente e necessário para nos fazer pensar sobre temas caros ao cristianismo e uma visão de tecnologia. Por fim, cabe refletir que ética queremos e como cristãos devemos atuar fortemente, porque temos, na minha opinião, a melhor teoria e a melhor prática no que se refere à ética. A autora mesmo acaba percebendo que a resposta não está num relativismo moral:

“O florescimento ativo da pessoa virtuosa não é uma aparência subjetiva, a virtude é apenas a atividade de viver bem. Isso significa que, embora a ética da virtude possa permitir muitos tipos diferentes de vidas florescentes, é incompatível com o relativismo moral. Há certos fatos psicológicos e sociais sobre pessoas humanas que restringem o que pode significar para nós florescer, assim como um gramado sem nutrientes e ressecado pela seca não consegue florescer, quer alguém perceba ou não seu mau estado. "

Há elementos fixos na ética e, portanto, já temos um cabedal ético para lidar com qualquer nova tecnologia que venha a surgir. Só precisamos refletir com sabedoria. A visão que a autora coloca aqui, encontrando relações na ética de diversas culturas, é algo que podemos visualizar através do conceito de graça comum e que C. S. Lewis explora em seu exercício de ética “Abolição do homem”.

A conclusão de Shannon Valor é que precisamos de educação para atingir uma sabedoria tecnomoral. Os cristãos têm séculos de reflexão sobre a ética das virtudes. A saída não parece nem um liberalismo extremado, nem um socialismo tecnológico, mas algo mais comunitário, de profundo senso de bem comum. Segundo Ortega y Gasset, mencionado por Valor, no século XX, chegamos à uma crise de desejo. Com a ausência de sabedoria prática, de phronesis, desejamos mal (pedimos mal, conforme Tg 4:3-13). Precisamos reformar nossos hábitos mentais e corporais, para assim atuarmos de maneira virtuosa no campo da ética e termos um futuro em que o florescimento humano seja real. Sem essa reflexão e mudança de cosmovisão, nossas tecnologias nos condenam a ter uma vida que não traz florescimento, mas sim abolição do homem e destruição da terra.

 

 

 

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Abraham Kuyper e "O problema da pobreza"_uma resenha



A descoberta do neocalvinismo foi para mim uma segunda conversão há um década atrás. Kuyper e Dooyeweerd me fizeram mudar até o rumo de meus estudos acadêmicos, saindo de história do Brasil para filosofia da tecnologia. As insatisfações que eu via com a vida cristã, com a visão de ciência, tecnologia e fé encontraram eco nas formulações iniciais desses autores e de outros que lhes seguiram os passos. A famosa expressão de Kuyper, de que "Não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!", proclamada num contexto da inauguração da Universidade Livre de Amsterdam em 1880, é impactante demais.
Mudou minha forma de ver a vida cristã, porque compreendi a importância de uma cosmovisão, uma visão que se derrama sobre toda a existência humana. Assim, claro que o problema da pobreza não seria deixado de lado. Mas a visão kuyperiana pode surpreender à muitos: não é uma visão que podemos encaixar na direita e nem na esquerda! Minha insatisfação pela forma como certos conservadores liberais tem tratado questões econômicas cresceu nos últimos anos, aumentada ainda mais pela descoberta do movimento do comunitarismo. Esse movimento pretende ser uma “terceira via”, que procura focar no bem comum. Minha surpresa é grande ao perceber que Kuyper nesse livro apresenta insights comunitaristas, muito tempo antes dessa vertente existir. (É claro que podemos ver sinais disso em Chesterton e na noção de subsidiariedade). A busca para solucionar o problema da pobreza residiria em pensar mais de forma comunitária, em redes simbióticas, à la Althusius, como bem chamou a atenção Guilherme de Carvalho no prefácio.
E também, já que somos mordomos da criação, devemos cuidar do planeta e dos nossos bens como se estes não nos pertencessem, mas o quais administramos em nome de Deus. Isso tem profundas implicações na forma como produzimos nossas tecnologias, por exemplo. Kuyper chama de “arte”, a busca de “trabalhar nesta natureza para que seja aprimorada e aperfeiçoada”. Mas isso não quer dizer que podemos abusar à nosso bel prazer, mas sim cultivar a natureza como mordomos. É interessante que Kuyper aponta tal arte como proveniente de antes da queda. Algumas vezes há uma ênfase na tecnologia como um fruto da queda, mas Kuyper se opõem à isso, porque “o homem ainda se encontrava no paraíso quando recebeu a ordem para ‘guardar e cultivar’ o mundo material” (p. 99). Como poderíamos usar a tecnologia para mitigar o problema da pobreza? Kuyper não dá soluções, apenas caminhos à seguir. 
Devido à queda, as obras de nossa mão são falíveis e imperfeitas e princípios injustos violentam a nossa natureza humana.  
Como bem apontado por Pedro Dulci na introdução, Kuyper estava bem ciente dos problemas causados pela Revolução Industrial, que no final do século XIX, quando escrevia, ganhava novo fôlego e expansão na Europa. Ele, apesar de ter um trabalho acadêmico impressionante, criando jornais, formando partido e fundando uma universidade não estava alheio aos problemas das pessoas simples; ele mesmo se converteu em uma igreja do interior (e isso quando já era pastor!). É alguém cuja biografia vale à pena estudar, por combinar muito bem a teoria (práxis) com a prática (ortopraxia).
Este livro é uma rica, ainda que curta, apresentação das ideias de Kuyper, com prefácio (Guilherme de Carvalho), introdução (Pedro Dulci) e posfácio (Lucas Freire) por autores que são estudiosos deste teólogo. O texto principal, fruto de uma conferência proferida há 130 anos, ainda não perdeu sua atualidade e precisa ser posto em prática.
 
Ps: Na introdução, são apontadas os três fatores responsáveis pela conversão de Kuyper:
1) um concurso acadêmico
2) um livro dado por sua noiva
3) uma igreja do interior. 
Nunca subestime onde o Espírito Santo pode estar falando com as pessoas! 

sábado, 5 de janeiro de 2019

Black Mirror – Bandersnatch. A ilusão de liberdade e o paradoxo de pac man.

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    Esse novo episódio de Black Mirror do canal de streaming Netflix, lançado em 28 de dezembro de 2018, apesar de não trazer nenhuma inovação no sentido de se poder escolher os caminhos à seguir no desenrolar da história (na própria Netflix há desenhos infantis com essa possibilidade), traz uma discussão bastante interessante da tecnologia, algo que sempre foi a proposta do programa.
    Quem assistir e não levar em consideração essa crítica, pode se frustrar, como podemos perceber por comentários na internet. A própria impossibilidade de se seguir certos caminhos em determinados momentos, caindo em um looping eterno, faz parte da crítica, como comentarei à frente. A minha resenha do filme vai ser baseada exatamente nessa crítica e um breve esboço da filosofia da tecnologia proposta por Black Mirror, que culmina nesse episódio, elementos que raros textos exploraram.
                O título do episódio, “Bandersnatch” faz referência ao jogo que Stefan está desenvolvendo baseado no livro de mesmo título, escrito por Jerome F. Davies. O livro é um catatau, com diversos caminhos para se escolher no desenvolvimento da narrativa, bem no estilo de livros “Escolha a sua própria aventura”, em que você, dependendo das escolhas, pode chegar à dezenas de finais diferentes (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro-jogo). Eu curtia muito esse tipo de livros na minha infância.
                O título Bandersnatch também faz referência à uma criatura presente nos livros de Lewis Carroll, como por exemplo, em “Alice através do espelho”. Essa criatura pode ser encontrada no mundo através do espelho, tendo muitas implicações, uma vez que “espelho” é muito importante no episódio e também em toda série, como o seu nome aponta.
O termo Black Mirror, quando relacionado à tecnologia, se refere à tela escura dos aparelhos quando estão desligados. O criador da série, Charlie Brooker, diz que

"Qualquer TV, qualquer LCD, qualquer iPhone, qualquer iPad – ou algo assim - se você apenas olhar para ele, parece um espelho preto, e há algo frio e horripilante nisso, e por isso foi um título tão apropriado para o show. "

A premissa de todo seriado é que a tecnologia pode espelhar e até amplificar os aspectos mais negros da natureza humana. Aqui podemos perceber a filosofia por trás de cada episódio de Black Mirror: um grande determinismo-pessimista tecnológico, que choca quem começa a assistir desde os primeiros episódios.
Assim, “Bandersnatch” pode querer inferir que há algo além, “Através do espelho”, do que meramente os episódios que assistimos em Black Mirror. Inclusive, a realidade se apresenta mais complexa, quando vemos referências à alguns episódios passados como meros jogos de vídeo-game (Ver Metalhead e Nosedive). A mensagem em “Alice através do espelho”, é que não podemos mudar o passado, mas aprender com ele e evitar erros futuros. É a mesma ideia que a psicóloga fala para Stefan em certo momento. Trata-se de um mundo espelhado ao do país das maravilhas, onde tudo ocorre ao contrário. O que os escritores de Bandersnatch, e de fato, de toda a série, parecem nos querer apontar é um mundo distópico extremamente pessimista, onde as consequências da tecnologia são levadas ao seu extremo. O aplicativo de dar notas às pessoas em “Nosedive” parece bobo no começo, mas leva à eventos catastróficos para a personagem principal, em sua busca hedonística.
Uma curiosidade:  os eventos do episódio começam em 9 de julho de 1984 e esta não é uma data aleatória. Houve um jogo real chamado Bandersnatch, mas ele nunca foi lançado. Foi criado por uma companhia de Liverpool, Inglaterra, chamada Imagine Software que faliu cedo. Na data em que inicia o episódio, a empresa foi oficialmente liquidada. (https://www.mirror.co.uk/film/black-mirrors-bandersnatch-game-real-13785695).
Bom, mas e quanto à filosofia da tecnologia de Black Mirror apresentada em Bandersnatch?
Em diversos momentos do episódio ouvimos a ideia de que o livre-abítrio é uma ilusão. A própria opção dos escritores deste episódio em deixar as pessoas escolherem para onde vai a história brinca, ironicamente, com essa ideia. Parece que temos opção, mas muitas vezes caímos num looping, e temos que voltar e escolher a única opção possível para continuar. Na verdade, em nossa sociedade tecnológica, parece que temos escolhas, mas muitas vezes as opções recaem em duas ou mais possibilidades. Comprarei iPhone ou Samsung? Posso decidir não participar em redes sociais? Não ter email? Ser um Theodore Kaczynski, o unabomber, e viver de forma alheia ao desenvolvimento tecnológico?
Muitos filósofos da tecnologia vão dizer exatamente que não há escolhas; a tecnologia decide por nós. Jacques Ellul, filósofo e sociólogo da tecnologia e quem eu considero a base filosófica de Black Mirror, aponta que não interessa o que queremos da tecnologia; se existe a possibilidade de algo ser produzido, ele será. A tecnologia determina nossa vida e, quando surge uma nova tecnologia, somos mudados e moldados em função dessa tecnologia. Veja-se como exemplo a prensa mecânica de Gutemberg. Antes dela, a leitura era algo comunal. Poucas pessoas sabiam ler, os livros eram raros, manuscritos e caros, assim, as leituras eram feitas em voz alta, em grupos. A medida em que a prensa foi sendo implementada, as pessoas passaram a ter mais acesso aos livros, agora relativamente baratos. A leitura tornou algo individualizado.
Outro exemplo: as mídias sociais. Elas determinam a maneira como nos comunicamos: de maneira rápida, curta e automática, estabelecendo o que consideramos ser uma comunicação efetiva. A velocidade da informação é estonteante, e queremos respostas no mesmo ritmo. Ao longo dos diversos episódios de Black Mirror vemos a degradação dos relacionamentos pessoais em função da aplicação da tecnologia. É uma visão bastante pessimista e diversas pessoas não concordam, tanto que o seriado e também autores deterministas como Ellul, não são unanimidades. A visão das consequências que a tecnologia mal usada pode acarretar é algo que nós não estamos dispostos a aceitar.
Mas a mensagem de Black Mirror e de filósofos deterministas, não é uma mensagem ludista, de que devemos destruir nossas tecnologias, é de que devemos cuidar com os excessos de seus usos, buscando que nossos aparelhos reflitam o que de melhor há na natureza humana, e não o pior.
O próprio looping no episódio de Bandersnatch, quando não conseguimos avançar devido à opções restritas nos aponta que o futuro tecnológico não é tão brilhante e com opções infinitas e maravilhosas. Na sociedade tecnológica temos certas opções limitantes e elas muitas vezes não nos levam à lugar algum. Há uma ilusão de liberdade que nos leva a aceitar o que tecnologicamente nos é oferecido.
Jacques Ellul em diversas obras comenta a ilusão de liberdade presente na busca do homo technicus, um ser que não sobrevive sem inovações tecnológicas. O que seria do homem sem suas ferramentas? A busca humana por criar tecnologias que lhe traga conforto e alívio de trabalho se transforma, na sociedade tecnológica, em uma busca de domínio sobre outros homens. As redes sociais querem ter controle sobre sua vida e a própria Netflix usa as escolhas dos usuários para saber que seriados e filmes fazem mais sucesso. Em um dos finais de Bandersnatch [spoiler alert], a busca do telespectador da Netflix por enredos mais emocionantes, com violência e ação, é parodiada.  
Você pode ter uma ilusão de liberdade ao escolher um eletrônico, ao escolher até o que assistir no amplo catálogo da empresa de streaming, mas, no fim, se se examinar com atenção, o que lhe resta são possibilidades limitadas. Alguém decidiu por você quais são as opções e escutar a música “x” ao invés da “y”, como no episódio, não é a maior das liberdades.
Algumas vezes na história, os seres humanos se insuflam na busca por autonomia e tem a ilusão de que possuem o controle de suas vidas. Veja-se o exemplo antiquíssimo de Babel, o exemplo maior de autonomia. Construiu-se uma torre alta, buscando unificação e autonomia, mas no fim o que acontece são desentendimentos.
A busca atual por transcender os limites humanos, usando a ciência e tecnologia como ferramentas também recai no mesmo mote babeliano: o homem buscando autonomia face às limitações da natureza. Só que ele não sabe realmente aonde isso vai dar, podendo acarretar em seres deturbados, como a versão reconstruída de Ash, que morre no episódio “Be right Back” da segunda temporada. O Ash reconstruído não é o mesmo Ash de antes; algo está faltando. Não sabemos as implicações à longo prazo de nossas tecnologias.
E é isso que os escritores de Black Mirror e filósofos como Jacques Ellul estão querendo apontar. A liberdade conquistada na sociedade tecnológica é uma falsa liberdade; se confiarmos plenamente de que os tecnólogos e cientistas sabem exatamente para onde vamos, sem nos importarmos com a ética, estamos fadados à sermos dominados pelas opções que a tecnologia faz.
Seremos como Pac Man, que pensa que com sua liberdade consegue sair do labirinto, mas na verdade está condenado a viver em uma realidade que se repete infinitamente. Como romper o ciclo? Talvez dando menos importância à tecnologia como um valor em si, e colocando valores humanos à frente: a tecnologia deve servir ao ser humano e não o contrário.  
Podemos ou não concordar com a filosofia de Black Mirror e os filósofos tecnologicamente deterministas, mas sua mensagem é premente: se continuarmos focando na tecnologia como um ídolo que nos liberta das amarras da natureza, estaremos condenados à um futuro distópico. Ou podemos atravessar o espelho e viver em um mundo para além da tecnologia; não sem tecnologia, mas em um mundo que contenha tecnologias que espelhe o melhor que há no ser humano. Precisamos dos pessimistas para nos fazer escolher o caminho certo. Analisando dessa forma a série, vejo Bandersnatch como o culminar da filosofia de Black Mirror, onde cada detalhe serve para apontar sua mensagem. Um episódio fantástico pra se rever diversas vezes e refletir.


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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Melhores livros de 2018

Quando chega o final do ano é hora de repensar e ver quais as melhores leituras do ano. Um exercício muito importante não somente como balanço, mas também pra pensar as futuras leituras anuais.
Li 90 livros este ano, mais 10 quadrinhos, então nada mais justo do que fazer uma lista dos 10 melhores livros do ano:

1.

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Um livro surpreendente mesmo já tendo lido outros livros do autor. Foi base de um artigo que apresentei no Canadá e certamente farei outras leituras e outros textos a partir dele. A visão que me surpreendeu vai muito no sentido da visão de N. T. Wright em "Surpreendido pelo sentido" (fiz uma resenha dele aqui). Um livro fundamental pra se entender a relação entre cidades e espiritualidade. Quem se interessa por missões urbanas, missões em geral, sociologia, teologia e tecnologia DEVE ler este livro. Espero que venha uma tradução logo.

2.

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Um tour de force sobre o conceito de cosmovisão. Sobre o assunto, o melhor que já li.
David Naugle fez um grande esforço em reunir, sistematizar e criticar o desenvolvimento do conceito. Notas abundantes e uma preciosidade acadêmica.
link pra comprar: https://editoramonergismo.com.br/products/cosmovisao-a-historia-de-um-conceito


3. 

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Outra surpresa, porque o autor escreve bem e de maneira profunda. Ótimos insights.
Fiz uma resenha dele aqui: http://oracaovalente.blogspot.com/2018/04/kevin-j-vanhoozer-quadros-de-uma.html?m=1
Pra comprar aqui

4.
Resultado de imagem para walter isaacson leonardo da vinci


Walter Isaacson já é um velho conhecido meu, mas neste livro ele se superou. (Ainda não li a biografia que ele escreveu de Einstein). Uma biografia de Da Vinci bem completa, cheia de referências e muito prazerosa de ler.

Para comprar aqui:

5.
Resultado de imagem para Maarten J. Verkerk, Jan Hoogland, Jan van der Stoep, Marc J. de Vries filosofia da tecnologia


Entre os diversos livros sistemáticos de filosofia da tecnologia disponíveis em português, este com certeza é um dos melhores. Bem estruturado, com exemplos práticos e encobrindo um vasto campo do conhecimento, este acabou virando automaticamente um livro base para meus textos e para as disciplinas que ministro.

Para comprar aqui:

6.
Resultado de imagem para Tolkien: uma biografia


Esta já clássica biografia de Tolkien ainda não havia tido uma tradução brasileira. Excelente pra conhecer o contexto em que Tolkien viveu e produziu suas obras, o livro é bem pesquisado e também muito bem escrito. Só senti falta de notas e fotos. (Segunda biografia entre os meus melhores livros lidos).

Para comprar aqui:

7.
Resultado de imagem para The intellectual world of C. S. Lewis
McGrath enquanto pesquisador de Lewis dispensa apresentações. É impressionante a quantidade de informações que ele consegue projetar sem tornar o texto maçante.
Inicialmente este livro pode parecer um "resto" de artigos que não entraram na biografia que o autor escreveu sobre Lewis, mas se revela algo extremamente precioso, pois aprofunda o universo intelectual. É impressionante a capacidade de pesquisa de Mcgrath e de fazer conexões a partir de pequenas frases ou passagens de Lewis. Para pesquisadores e interessados em Lewis um prato cheio.

8.
Resultado de imagem para No café existencialista
Este livro é é um deleite para a mente. Escrito na forma de uma conversa em um café parisiense (sem deixar de ser profundo, como uma conversa filosófica deve ser), este livro traz o retrato do desenvolvimento da filosofia francesa existencialista, focando principalmente em Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, mas também estabelecendo contatos com Heidegger, Husserl, Jaspers, Merleau-Ponty entre muitos outros figurões importantes no desenvolvimento dessa filosofia. Um estilo de escrita primoroso. (As notas de final de texto, para os estudiosos, estão lá!)

9.
Resultado de imagem para o ajuste fino do universo mcgrath
 É uma excelente obra de introdução e aprofundamento para todo o cristão que se interessa por desenvolver uma fé sólida e racional. McGrath tem a vocação de um grande divulgador científico, tomando cuidado para não “poluir” o texto com demasiados dados e aprofundando discussões em notas de final de texto.
Excelente iniciativa de tradução da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2), que tem feito um ótimo trabalho.
Espero (e indico) que cristãos e ateus leiam essa obra. Com toda a certeza esse livro é uma ferramenta fundamental.
Fiz resenha aqui

10.
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No ano que voltei a ler mais quadrinhos, fechei com chave de ouro. Belos traços, uma história distópica que te prende e um final angustiante. Uma boa história de ficção científica, muito bem transposta para a linguagem dos quadrinhos.

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