
Charles Kingsley disse que: “Sabíamos há muito tempo que Deus era tão
sábio que poderia fazer todas as coisas: mas vejam, ele é tão mais sábio até
mesmo que isso, no sentido de que pode fazer com que todas as coisas façam a si
mesmas”.
Estava outro dia lendo as “Confissões” de Agostinho quando,
ao chegar aos livros XI a XIII, me deparo com o conceito de “razões seminais”. Pesquisando,
percebi que Agostinho havia desenvolvido este conceito em seus estudos do
Gênesis, o qual aponta que Deus criou simultaneamente todas as coisas. Pra mim
isso despertou uma curiosidade intelectual e lembrei que havia visto que
Alister McGrath mencionava Agostinho em “O Ajuste fino do universo”. Resolvi
ler toda essa obra e, para minha grata surpresa, não só minha curiosidade foi
satisfeita como me deparei com uma obra extremamente bem pesquisada e
fundamentada nas últimas pesquisas científicas.
Para aqueles que desconhecem o autor, Alister McGrath era
ateu convicto até a universidade. Em seus estudos de graduação em química e doutoramento
em bioquímica em Oxford, ele começou a perceber que a ciência não implicava
necessariamente em ateísmo. Então, ele passou a se interessar seriamente na
questão de fé e ciência e se doutorou em teologia e em letras (ver o capitulo “Ciência,
fé e a compreensão do sentido das coisas” em “Verdadeiros cientistas fé verdadeira”). Portanto, com essa
formação, ele possui um cabedal intelectual bastante pertinente para abordar a
relação entre ciência e fé; tanto que tem sido reconhecido como um dos grandes
proponentes desse debate, chegando em 2009 a palestrar nas importantes
Palestras Gifford, que promovem e difundem o estudo de Teologia Natural. O
livro que comento aqui foi resultado dessas palestras.
“O ajuste fino do universo” é um daqueles livros que abre
uma imensa série de desdobramentos de pesquisa e aprofundamentos tanto para
iniciantes quanto para “iniciados” em seus debates: as suas quase 90 páginas de
notas e biografia demonstram o cuidado com a pesquisa; o estilo linguístico é
marcante, tornando conceitos científicos complicadíssimos um tanto quanto mais
fáceis de apreender.
O objetivo da obra é contribuir para o desenvolvimento de
uma teologia natural que leve em consideração o avanço cientifico mais atual em
convergência com a teologia, no que concerne ao fenômeno antrópico. Este princípio
é a noção de que o universo parece surpreendentemente amigável à vida.
Nessa empreitada, McGrath constrói sua argumentação em duas
colunas: uma chamada “Uma teologia natural trinitária”, que se propõe a constituir
uma metodologia teológica para o debate; e outra chamada “Ajuste fino: observações
e interpretações”, que busca apresentar o que de mais recente há em teorias e
dados científicos que frutificam a teologia e a noção de princípio antrópico.
É na primeira coluna que McGrath resgata o pensamento
agostiniano de rationes seminales, ou razões seminais. Segundo Agostinho,
alguns princípios de ordem foram embutidos na criação, os quais se
desenvolveram apropriadamente em estágios posteriores. Essas rationes seminales seriam princípios
como sementes que estão presentes desde a origem cósmica, em cada qual estando
contido o potencial para o posterior desenvolvimento de um tipo de vida
específico. Deus teria criado tudo simultaneamente e, por meio de sua providência,
foi capaz de direcionar a efetivação subsequente das potencialidades então
criadas. Aqui já percebemos ressonâncias com a teoria darwiniana.
Segundo McGrath, “o argumento básico de Agostinho é que Deus
criou o mundo completo com uma série de múltiplas potências dormentes, as quais
foram efetivadas no futuro por meio da providência divina.” Deus criou no primeiro
momento as potências para todos os tipos de seres viventes que chegariam mais
tarde, incluindo a humanidade. Semelhante ao que vemos em Silmarillion, de
Tolkien, dos homens surgindo mais tarde na Terra Média.
Isso não quer dizer que Deus criou o mundo incompleto ou
imperfeito. Como disse Agostinho:
Estas foram feitas por Deus no
princípio, quando ele fez o mundo e simultaneamente criou todas as coisas, as
quais se desdobrariam nas eras por vir. Elas são aperfeiçoadas no sentido de
que na própria natureza delas, pela qual elas alcançam seu papel no tempo, não possuem
nada que não estivesse já presente nelas casualmente. No entanto, elas apenas
se iniciaram, uma vez que nelas estão as sementes, por assim dizer, das
perfeições futuras que emergiram do seu estado oculto e as quais seriam
manifestadas no tempo devido. (Agostinho,
Comentário literal de Gênesis,
6.11.18, apud McGrath, p. 119).
Essa impressionante concepção de Agostinho serve como uma boa
base metodológica para os estudos de Teologia Natural. E é com essa base que McGrath passa a examinar
as constantes do universo (cap. 9), as origens da vida (cap. 10), a química da
água (cap. 11), os catalisadores químicos e os condicionantes da evolução (cap.
12), o mecanismo da evolução (cap. 13), a direcionalidade da evolução (cap. 14),
amparado por muitos dados e estudos atuais.
O conceito do principio antrópico tem se desenvolvido
amplamente nos últimos anos, principalmente após a obra de John Barrow e Frank
Tipler, The Anthropic Cosmological
Principle, de 1986. Segundo a argumentação desses autores, se o universo
saltou à existência num surpreendente curto período de tempo já possuindo as leis que governariam seu
desenvolvimento, a questão sobre a origem e o caráter dessas leis torna-se
de fundamental importância. As leis da natureza não vieram a existir por um
processo gradual de seleção cumulativa. O universo que emergiu a partir do big-bang, já era governado por leis que
foram finamente ajustadas para incentivar o surgimento de formas de vida
baseada no carbono.
Em afirmação basilar, McGrath diz que “o ponto essencial é
que, se os valores de certas constantes fundamentais que governam o desenvolvimento
do universo tivessem sido levemente diferentes, sua evolução teria assumido um
curso diferente, levando a um cosmos no qual a vida não teria sido possível.”
(p. 134).
Por exemplo, nos estudos para compreensão do surgimento dos
seres vivos, tem-se percebido que a química é fundamental para proporcionar dois
componentes fundamentais: um sistema metabólico de automanutenção e um sistema
genético capaz de transmitir informação biológica. Alguns pesquisadores
enfatizam que a evolução foi mantida, guiada e condicionada pelas modificações
da química do ambiente. Isso aponta para uma mudança de pensamento no qual a
aleatoriedade do neodarwinismo tradicional está dando lugar a uma concepção de emergência
da vida mais regulada por leis científicas. A evolução não deve ser vista como
um processo puramente aleatório.
Mas há muito mais do que isso,
como pode-se perceber pelas constantes da natureza, que McGrath explora muito
bem (aqui comento somente 3 das 6 que ele aponta):
. A razão
da força eletromagnética em relação à força da gravidade; se esta fosse levemente
menor do que o valor observado, apenas um universo em miniatura de curta
duração poderia existir: nenhuma criatura poderia ter uma estatura maior do que
os insetos e não haveria tempo necessário para a evolução biológica;
. a
força nuclear forte, que define o quão firmemente o núcleo atômico se une;
controla o poder do sol e, mais sensivelmente, como as estrelas trasmutam
hidrogênio em todos os átomos da tabela periódica; se ocorresse uma leve
variação, nós não poderíamos existir.
. a
quantidade de matéria no universo. O número cósmico Ω (ômega) nos diz a importância
relativa da gravidade e da expansão de energia no universo. Se essa razão fosse
alta demais em relação a um valor “crucial” particular, o universo teria
colapsado muito tempo atrás; se ela fosse baixa demais, nenhuma galáxia ou
estrelas teriam sido formadas. A velocidade de expansão inicial parece ter sido
finamente ajustada.
Por
fim, Alister McGrath aborda muitos assuntos que precisam ser melhor conhecidos por todos aqueles que estudam e procuram abordar o tema da relação
entre ciência e fé. No Brasil, o meio acadêmico e as igrejas ainda são solos
muito fracos desse debate, transparecendo a ilusão de que há uma disputa, de
que são campos irreconciliáveis, ou que se deve negar as teorias científicas em
prol de teorias fracamente constituídas. Mas esta é uma posição ilusória, e
McGrath é um autor que tem procurado demonstrar a racionalidade da fé cristã e,
principalmente, que a pesquisa científica nos ajuda a compreender o mundo
criado por Deus. Teorias e leis cosmológicas, químicas e biológicas não fazem
parte necessariamente de ciências naturalistas, mas antes, nos ajudam a apontar
ao Criador.
“O ajuste fino do Universo” é uma excelente obra de
introdução e aprofundamento para todo o cristão que se interessa por
desenvolver uma fé sólida e racional. McGrath tem a vocação de um grande
divulgador científico, tomando cuidado para não “poluir” o texto com demasiados
dados e aprofundando discussões em notas de final de texto.
Excelente iniciativa de tradução da Associação Brasileira de
Cristãos na Ciência (ABC2), que tem feito um ótimo trabalho.
Espero (e indico) que cristãos e ateus leiam essa obra;
precisamos avançar e tornar o debate mais profundo. Com toda a certeza esse
livro é uma ferramenta fundamental.
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