segunda-feira, 31 de março de 2014

Surpreendido por N. T. Wright


O que cremos sobre a vida após a morte afeta diretamente o que cremos sobre a vida antes da morte. É com essa premissa que Wright inicia seu livro “Surpreendido pela Esperança”, pelo qual eu me admirei de forma muito positiva.
N. T. Wright é um bispo anglicano em Durham, na Inglaterra, além de ter sido professor em Cambridge e Oxford e atualmente lecionar na Harvard Divinity School, Universidade Hebraica de Jerusalém e na Universidade Gregoriana em Roma. Profícuo escritor, com mais de 40 livros publicados ele é um dos mais importantes e respeitados estudiosos do Novo Testamento.
O livro “Surpreendido pela Esperança” (Ultimato, 2009) tem dois níveis: um primeiro, que fala sobre a morte e sobre o que vem depois dela – é uma espécie de teorização sobre o tema; um segundo nível trata da fundamentação da teologia prática e até mesmo política, ou seja, oferece uma reflexão cristã sobre a natureza da tarefa que assumimos ao buscar trazer o reino de Deus ao mundo real em que vivemos. Esse segundo nível foi pra mim o mais pertinente, apesar de necessitar da carga teórica do outro nível pra poder compreender melhor a tarefa missionária da Igreja. Por sinal o livro em inglês tem o subtítulo “Repensando céu, a ressurreição e a missão da igreja”.
Percebo que muitos cristãos tem um descaso para com a teologia, a teoria e assuntos como escatologia, assim eles acabam não percebendo como isso marca profundamente a maneira como eles agem na prática. Como demonstrarei neste texto, a visão que temos de escatologia afeta diretamente a maneira como operamos na vida presente.

Na verdade, como Wright comenta, a Bíblia fala muito pouco sobre “ir para o céu quando morrer” e menos ainda sobre um inferno após a morte. As imagens medievais de céu e inferno, estimuladas pela obra de Dante, têm exercido uma enorme influência na imaginação dos cristãos. Muitos creem que “céu” no Novo Testamento é o lugar para onde vão os salvos após a morte. Quando o Evangelho de Mateus se refere ao “reino de Deus”, essa expressão é traduzida nos outros Evangelhos como “reino dos céus”. Como muitos iniciam a leitura dos Evangelhos pelos livros de Mateus, quando leem que Jesus falou sobre “entrar no reino dos céus”, imaginam que ele na verdade estivesse se referindo a “como ir para o céu quando morrer”, o que certamente não é o que Jesus ou Mateus tinham em mente, como veremos.
Tem que se ter em mente que a posição de Wright, da Igreja como O Reino Milenar de Cristo, não é nova. Agostinho já reconhecia o Reino de Cristo presente agora na vida da Igreja, que ele apresenta como “Cidade de Deus”. Ele reconhece o senhorio de Cristo como uma realidade agora, uma vez que Cristo é o “Rei e fundador da Cidade”. (Cidade de Deus, Prefacio, livro I,5). Para Agostinho, a igreja agora é o Reino de Cristo e o Reino dos Céus (Cidade de Deus, XX, 9).
Calvino também via a igreja presente como o Reino de Deus. “Onde o reinado e o sacerdócio de Cristo é encontrado, ali sem dúvida está a Igreja. (Comentários em Jeremias, Jr. 33.17).
Para Calvino, a igreja que o reino constrói não é nada mais do que o corpo de Cristo na terra no qual as pessoas são preparadas através de justificação e santificação para se tornarem cidadãs do reino. Este papel da igreja é expresso na designação de Agostinho e de Calvino da Igreja como “mãe”, que cria todos os crentes, carregando-os dentro do útero, dando nascimento a eles, cuidando deles, e preparando-os para a cidadania do Reino de Deus. (Calvino, Institutas, IV, 1,1.)
Nós podemos dizer que a igreja é um sinal da presença do reino de Cristo na terra; entretanto, a igreja não representa exaustivamente o Reino de Cristo que no final tem proporções cósmicas.
Assim, devemos acompanhar mais de perto a argumentação do autor que nos conduz de maneira primorosa à sua conclusão final. Quero deixar claro que está não é uma resenha, nem um resumo do livro em questão, mas sim uma sistematização das principais idéias apresentadas.

Visão do futuro

Wright, analisando as acepções acerca do “futuro cósmico” (capítulo 5), percebe como os cristãos hoje estão sendo atraídos por uma visão de futuro que apela para a destruição final da ordem criada e a um destino puramente “espiritual”, no sentido de ser completamente não-material. Pode-se traçar as origens dessa forma de pensamento em Platão. “Para ele, assim como para Buda, o mundo presente constituído de espaço, tempo e matéria é apenas uma ilusão, como sombras tremeluzindo em uma caverna; cabe ao homem entrar em contato com a verdadeira realidade, que está além do espaço, do tempo e da matéria. Para Platão, essa realidade seria a ‘forma’ eterna, e para Buda, o eterno ‘nada’.”
Assim, a visão de Platão rejeitava o fenômeno da matéria. Não é apenas o mal que está errado no mundo; é a variação e a deterioração, a fragilidade da matéria: o crescimento e o florescimento humanos são prenúncios de sofrimento e morte. Para os platônicos, portanto, assim como para os budistas e hinduístas, todas essas coisas são sinais de que fomos feitos para uma realidade bem diferente, não uma realidade constituída por espaço, tempo e matéria, mas um mundo de existência puramente espiritual, no qual estamos livres das algemas da mortalidade. Assim, para nos livrarmos da mortalidade, deveríamos nos livrar de tudo que pode se deteriorar e morrer, ou seja, nosso próprio corpo.
A influência platônica sobre o pensamento cristão pode ser sentido desde o começo, principalmente no fenômeno conhecido por gnosticismo. Como Platão, os gnósticos acreditavam que o mundo material era um lugar inferior e escuro, e intrinsecamente mau. Dentro desse mundo, porém, podiam ser encontradas algumas pessoas que estavam ali por um propósito diferente. Esses filhos da luz seriam como estrelas cadentes, pequenas centelhas de luz, geralmente ocultas por um corpo material grosseiro. Entretanto, uma vez que tomasse conhecimento de quem eles eram, esse “conhecimento” (em grego gnosis) lhes permitiria entrar em uma existência espiritual, na qual o mundo material não mais teria importância.  Após terem entrado nessa existência espiritual, eles passariam a viver espiritualmente, por meio da morte, em um mundo infinito, além do espaço, do tempo e da matéria.
Muitos cristãos ocidentais tem se deixado contaminar por uma versão amenizada do pensamento de Platão. Uma grande quantidade de hinos e poemas cristãos revela uma tendência ao gnosticismo. A espiritualidade “de passagem” (como na canção que diz: “Este mundo não é meu lar/ eu estou apenas de passagem”), embora tenha, é claro, algumas afinidades com o cristianismo clássico, estimula uma atitude agnóstica: o mundo criado é, na melhor das hipóteses, um lugar irrelevante, escuro, perverso e sombrio, onde as almas imortais, que existiam originalmente em uma esfera diferente, aguardam ansiosamente o momento de retornar a ela, tão logo isso lhes seja permitido. Há uma suposição geral, entre os cristãos do Ocidente, de que o motivo principal para alguém se tornar cristão é a garantia de poder “ir para o céu quando morrer.” Textos que não se referem ao céu muitas vezes são interpretados como referindo-se a ele, e textos que dizem o oposto, como Romanos 8.18-25 e Apocalipse 21-22, são simplesmente ignorados, como se não existissem.
A conclusão de Wright nesta parte é que “as consequências podem ser sentidas em todos os lugares na igreja ocidental e nas visões de mundo geradas pelo cristianismo.” Já que Deus pretende em breve destruir o universo, não precisamos nos preocupar com os problemas ambientais. Entretanto, isso se baseia em uma falsa premissa e um entendimento errado da obra de Deus. Assim é necessário compreender “o que o mundo inteiro aguarda” na visão Cristã primitiva (p. 107).
N. T. Wright nos leva a olhar primeira para Filipenses 3.20-21 em busca de uma exegese mais aprofundada da passagem.
“Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,
Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas.
(
Filipenses 3:20-21)
Para compreendermos melhor o texto devemos entender o contexto desta passagem. Filipos era uma colônia romana. O imperador Augusto havia estabelecido seus veteranos ali, após diversas batalhas. Nem todos que moravam ali eram cidadãos romanos, mas todos conheciam o significado da palavra “cidadania”. As colônias romanas surgiram por dois motivos. Primeiramente, com o objetivo de estender a influência romana ao redor do mundo mediterrâneo, criando células e redes de pessoas leais a César em um contexto mais amplo. Segundo, por ser uma forma de evitar os problemas de superlotação na capital. O imperador não queria soldados aposentados, com tempo (e sangue) nas mãos, perambulando por Roma, prontos a causar problemas.
Assim, quanto Paulo diz, “nossa pátria está nos céus”, ele não quer dizer que em seguida à morte iremos morar no céu. Ele está dizendo que o Salvador, o Senhor, o Rei Jesus – todos estes títulos imperiais – virá do céu para a terra, para mudar a condição atual e a situação de seu povo. A palavra-chave aqui é “transformar”: ele transformará nossos frágeis corpos atuais para torná-los como seu corpo glorioso. Jesus não dirá que nossos corpos atuais são supérfluos e, portanto, podem ser descartados. Nem irá simplesmente melhorá-los. Em uma manifestação de grande poder – o mesmo poder que o ressuscitou, como Paulo diz em Efésio 1.19-20 – ele transformará nossos corpos atuais em corpos semelhantes ao dele, como parte de sua tarefa de rejeitar todas as coisas a si mesmo. Embora esteja se referindo primeiramente à ressurreição humana, Felipenses 3 indica que ela ocorrerá no contexto da transformação vitoriosa de todo o cosmos.

Apocalipse 21 e 22 também são passagens fundamentais no argumento de Wright. Ali vemos a nova Jerusalém descendo do céu, como uma noiva adornada para o seu marido. Como vimos em Filipenses 3, não somos nós que vamos para o céu; é o céu que vem a terra. “esta é uma rejeição definitiva a todos os tipos de gnosticismo, a toda visão de mundo que entende que o propósito final é a separação entre Deus e o mundo, entre matéria e espírito, entre terra e céu. É a resposta final à oração do Pai-nosso: que o Reino de Deus venha e que a sua vontade seja feita assim na terra como no céu. É a isso que Paulo está se referindo em Efésio 1.10, ao afirmar que o plano de Deus era convergir em Cristo todas as coisas, tanto as do céu como as da terra.” (p. 120).
“A promessa contida nessa passagem, portanto, é o que Isaias previu: a promessa de um novo céu e uma nova terra, em substituição ao antigo céu e à antiga terra, que estavam destinados à destruição. Isso não quer dizer que Deus começará tudo do zero.” (121).
O que estamos analisando aqui, não é um abandono da escatologia, um esquecimento da ideia dos judeus e os cristãos do primeiro século de que o mundo fosse acabar imediatamente. A palavra escatologia, que significa literalmente “o estudo das últimas coisas”, não se refere a morte e juízo, nem a céu e inferno, como se costuma pensar. Ela se refere a uma forte crença da maioria dos judeus do primeiro século e, praticamente, de todos os cristãos primitivos de que a história ruma em determinada direção sob a orientação de Deus e que essa direção é a de um novo mundo de justiça, cura e esperança, promovidas pelo próprio Deus. A transição do mundo atual para o novo representa não a destruição do universo presente de espaço/tempo, mas sua cura radical. Os autores do Novo Testamento – particularmente Paulo – aguardavam ansiosamente esse tempo e enxergavam a ressurreição de Jesus como o principio, ou as “primícias” desse período.
Entre a ascensão de Cristo e a parousia, “segundo vinda”, temos que a tarefa da igreja é libertar-se de duas coisas: da tentativa de edificar o reino de Deus por seu próprio esforço e do desespero por se imaginar incapaz de fazer alguma coisa até a volta de Jesus. Nós não “edificamos o reino” por nosso próprio esforço, mas para o reino. Tudo o que fazemos no presente com fé, esperança e amor, em obediência ao nosso Senhor que ascendeu ao céu e no poder do seu Espírito, será aperfeiçoado e transformado quando ele se manifestar. Isso traz um sinal de juízo, como Paulo deixa claro em 1 Coríntios 3.10-17. O “dia” revelará as obras de cada um.
Mas por que receberemos novos corpos? De acordo com os cristãos primitivos, o propósito desse novo corpo será governar com sabedoria sobre o novo mundo de Deus. Esqueça aquelas imagens de anjos tocando harpas e perambulando para lá e para cá. Haverá trabalho a fazer, e teremos satisfação em fazê-lo. Todos os talentos e habilidades que colocamos a serviço de Deus nessa vida presente – e, talvez, também, os interesses e gostos dos quais abrimos mão porque conflitavam com nossa vocação – serão aperfeiçoados, dignificados e devolvidos a nós para serem exercidos para a glória de Deus. Há várias promessas no Novo Testamento sobre o povo de Deus “reinando”, e certamente não se pode dizer que sejam apenas palavras vazias. (veja-se, por exemplo, Rm 5.17; 1 Co 6.2,3;  2 Tm 2.12; Ap. 1.6; 5.10; 20.4; 22.5; Lc 19.17, 19.) A visão bíblica do futuro de Deus inclui a renovação de todo o cosmos, e portanto, teremos muito trabalho pela frente, novos projetos inteiros a serem assumidos. Em termos da visão da criação original em Gênesis 1 e 2, o jardim precisará de cuidados novamente e os animais deverão receber um novo nome.

Repensando a salvação: o céu, a terra e o Reino de Deus

O capitulo que pra mim foi o mais importante na argumentação de Wright foi o “Repensando a salvação: o céu, a terra e o Reino de Deus”. Nele o autor aponta que “a compreensão adequada da (surpreendente) esperança futura que nos é concedida em Jesus Cristo conduz diretamente, e de modo também surpreendente, a uma visão da esperança presente, que constitui a base de toda missão cristã. Esperar por um futuro melhor neste mundo para os pobres, os doentes, os solitários e deprimidos, para os escravos, os refugiados, os famintos e desabrigados, para os que são vítimas de maus-tratos, os paranoicos, os oprimidos e desesperados e, de fato, para o mundo inteiro, não é um bônus extra, algo acrescentado posteriormente “ao evangelho”. Trabalhar por essa esperança surpreendente que vem do futuro final de Deus para o presente, não é desviar a atenção da obra “missionária” ou do “evangelismo”; ao contrário, é o próprio cerne, uma parte vital e estimulante do evangelismo. As pessoas prestavam atenção no que Jesus dizia principalmente porque viam o que ele estava fazendo. Elas viam Jesus “salvando” pessoas da doença e da morte, e o ouviam falando sobre “salvação”, a mensagem pela qual ansiavam, e que se estendia da realidade imediata para o futuro definitivo. (...) Todo o ministério de Jesus abrangia o que ele estava fazendo no presente e o que estava prometendo, a longo prazo, para o futuro. E o que estava prometendo para o futuro e fazendo no presente não era salvar almas sem corpo para a eternidade, mas resgatar pessoas da corrupção e da decadência do mundo, para que elas pudessem desfrutar, já no presente, da renovação da criação, que é o propósito de Deus – e para que elas pudessem, assim, se tornar suas companheiras e parceiras nesse projeto mais abrangente.” (p. 207-208).
!!! No capítulo mais longo e mais denso de todas as suas cartas, 1 Co 15.58, Paulo escreveu sobre a ressurreição futura do corpo, descrevendo-a detalhadamente. Ele poderia concluir esse capítulo dizendo: “portanto, uma vez que vocês têm tamanha esperança, sentem-se e relaxem, pois Deus preparou um grande futuro para vocês”. Mas não é isso que ele diz. Ao contrário, ele diz: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão.”
O argumento da ressurreição, sustentado por Paulo em toda a carta, é o de que a vida corpórea tem valor justamente porque iremos morrer. Deus nos ressuscitará para uma nova vida. O que fazemos com o corpo no presente tem importância, porque Deus tem um grande futuro esperando por ele.
O que fazemos no presente, permanecerá no futuro de Deus.
Reajustando nossos conceitos sobre missões. De acordo com Wright não podemos cair na desgastada divisão quanto ao sentido de missão no mundo, colocando de um lado aqueles que entendem “evangelismo” como “salvar almas para a eternidade” e de outro aqueles que creem em “missão” como “trabalhar pela justiça, pela paz e pela esperança no mundo presente”. Essa grande divisão não tem nada a ver com Jesus e o Novo Testamento, e tem tudo a ver com a submissão muda de muitos cristãos (tanto “conservadores” como “radicais”) à ideologia platônica do Iluminismo. A partir do momento que entendemos o sentido da ressurreição, podemos e devemos entender também o sentido da missão. Se queremos uma igreja envolvida em missões, precisamos que a obra missionária seja marcada pela esperança.
Neste sentido precisamos repensar nossos conceitos.

Repensando os conceitos: salvação

Um primeiro é o conceito de salvação. “Salvação” não é “ir para o céu”, mas ser “ressuscitado para a vida no novo céu e na nova terra de Deus.”. Quando recolocamos as coisas nestes termos, percebemos que o Novo Testamento está repleto de pistas, sugestões e afirmações diretas de que a “salvação” não é algo a ser desfrutado em um futuro distante. Podemos desfrutá-lo aqui e agora (sempre parcialmente, é claro, uma vez que todos nós ainda temos de morrer), antecipando no presente o que virá no futuro. “Nós fomos salvos”, diz Paulo em Romanos 8.24, “na esperança”. O tempo do verbo indica uma ação passada, algo que já aconteceu, referindo-se obviamente à fé e ao batismo, mencionados por Paulo nesta carta. A salvação, no entanto, permanece “na esperança”, porque ainda aguardamos com ansiedade a salvação futura e definitiva, sobre a qual ele fala em (por exemplo) Romanos 5.9-10.
Isso explica por que o Novo Testamento geralmente se refere à “salvação” e “ser salvo” como algo que acontece em um corpo, no mundo presente. Alguns exemplos: Jairo suplicou a Jesus por sua filhinha, com estas palavras: “Vem, impõe as mãos sobre ela para que seja salva” (Mc 5.23); enquanto Jesus se dirigia à casa de Jairo para salvá-la, a mulher com hemorragia pensou consigo mesma: “Se eu apenas lhe tocar as vestes, ficarei curada” (v.28); “filha”, diz Jesus a ela após a cura, “a tua fé te salvou” (Mc 5.23, 28, 34). É fascinante notar que passagens como essas – e há muito mais – geralmente estão colocadas ao lado de outras que falam de “salvação” em termos mais amplos, que parecem ir além da cura ou da restauração física. Essa relação de contiguidade deixa alguns cristãos nervosos (afinal, “salvação” para eles é uma questão espiritual), mas parece não ter perturbado a igreja primitiva. Para os primeiros cristãos, a “salvação” definitiva estava inteiramente relacionada ao novo mundo de Deus. Quando Jesus e os apóstolos curavam pessoas ou eram resgatados de naufrágios, por exemplo, eles estavam antecipando de maneira adequada essa “salvação” definitiva, essa transformação que cura o espaço, o tempo e a matéria. O resgate futuro que Deus havia planejado e prometido estava começando a se tornar realidade no presente. Nós somos salvos não como almas, mas como seres integrais (214)
Mandato cultural. Para se tornar um verdadeiro ser humano, no sentido pleno, a pessoa precisa ser “salva” no passado por meio da conversão, no presente por meio de atos de cura e de resgate, inclusive em resposta à oração “não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal”, e no futuro, quando ressuscitar dentre os mortos. E seres humanos genuínos, desde Gênesis 1, recebem o mandato de cuidar da criação, de preservar a ordem e de estabelecer e manter comunidades no mundo. Supor que somos salvos apenas para nosso próprio benefício, para a restauração do nosso relacionamento individual com Deus (e como isso é vital!) e para irmos para nossa morada final no “céu” (e como isso é equivocado!) é comparável a um menino que ganha uma bola de futebol e insiste que, como ela lhe pertence, só ele pode jogar. Certamente uma bola de futebol só pode servir ao seu propósito quando outras pessoas também estiverem jogando. Semelhantemente, a salvação só atinge seu propósito quando aqueles que foram salvos, estão sendo salvos e que um dia serão plenamente salvos perceberem que não são salvos como almas, mas como seres completos, não para si mesmos, mas para aquilo que Deus deseja realizar por meio deles (215).
Quando Deus “salva” pessoas nesta vida, operando por meio de seu Espírito para trazê-las à fé, e conduzindo-as para seguirem Jesus no discipulado, na oração, na santidade, na esperança e no amor, essas pessoas são programadas para serem um sinal e uma amostra daquilo que Deus quer fazer no mundo todo. Além disso, essas pessoas não devem apenas ser um sinal e uma amostra dessa “salvação” definitiva: elas devem também ser parte do que Deus pretende fazer no presente e no futuro. É sobre isso que Paulo está falando quando diz que toda a criação aguarda em “ardente expectativa” – não apenas pela sua própria redenção, sua libertação da corrupção e da obediência, mas também pela revelação dos filhos de Deus (Rm 8.19); pela revelação daqueles seres humanos remidos, por meio de quem a mordomia da criação será por fim reconduzida à sabia ordem para a qual foi criada. Como Paulo deixa claro que os que creem em Jesus Cristo e estão unidos a ele por meio do batismo já são filhos de Deus, já estão “salvos”, essa mordomia não pode ser adiada para o futuro definitivo. Ela deve começar aqui e agora (216).

Reino de Deus

Assim, convém avançarmos para a definição de Reino de Deus. Segundo Wright, “Reino de Deus” e “reino do céu” significam a mesma coisa, ou seja, o governo soberano de Deus que, de acordo com Jesus, se manifestou e continua se manifestando no mundo presente, na “terra”. Foi isso que Jesus nos ensinou a orar pedindo que venha. É a isso que diz respeito a ressurreição, a ascensão de Jesus e o dom do Espírito. Seu propósito não é nos levar para longe desta terra, mas nos tornar agentes da transformação desta terra, antecipando o dia quando, como nos foi prometido, “a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar” (Is 11.9). quando o Jesus ressurreto aparece a seus seguidos no final do evangelho de Mateus, ele declara que toda a autoridade no céu e na terra lhe foi dada (Mt 28.18); quando João ouve as grandes vozes no céu, elas dizem: “O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11.15; Mt 28.18). O que os evangelhos estão afirmando – Mateus, Marcos, Lucas e João, mais o livro de Atos – é que ele já começou (216-217)
Aprofundando estas questões, no capítulo seguinte, “Construindo em prol do reino”, Wright começa com a comum objeção feita a esta concepção: (p. 221) “Não parece que estamos tentando construir o reino de Deus por meio de nosso próprio esforço?” Dois pontos devem ser esclarecidos neste sentido:
1)      Deus edifica o seu reino. Porém ele ordenou o mundo de modo que sua obra fosse edificada pelos seres humanos, criados para refletir sua imagem. “ser feito à imagem de Deus” significa que Deus deseja que sua presença e seu poder sábio, criativo e amoroso sejam refletidos ou “reproduzidos” no mundo por meio das suas criaturas humanas. Ele nos recrutou para agirmos como seus mordomos no projeto de criação. Após o desastre da rebelião e da corrupção, ele incluiu na mensagem do evangelho o fato de que, por meio da obra de Jesus e do poder do Espírito, os seres humanos foram preparados para auxiliar na tarefa de consertar esse projeto. Assim, a objeção inicial quanto a tentarmos edificar o reino de Deus com nossos próprios esforços, embora pareça humilde e piedosa, na verdade parece uma desculpa para permanecermos omisso diante do chamado de Deus.
2)      Precisamos distinguir ente o reino final e suas antecipações. A vinda final e conjunta do céu e da terra é o ato divino supremo da nova criação. Somente Deus unirá todas as coisas em Cristo, no céu e na terra. Só ele poderá criar “novos céus e a nova terra”. O que podemos e devemos fazer no presente, se somos obedientes ao evangelho, se estamos seguindo a Jesus, e se somos habilitados, fortalecidos e dirigidos pelo Espírito, é trabalhar em prol do reino. Isso nos leva a 1 Coríntios 15.58: a obra que fazemos no Senhor não é vã. E aqui cito uma das passagens mais belas do livro de Wright:
“Não se trata de lubrificar as engrenagens de uma máquina que está prestes a cair em um abismo; nem de restaurar uma obra de arte que em breve será lançada ao fogo; nem de cultivar rosas em um jardim que em breve dará lugar a um prédio. Por estranho que possa parecer, e tão difícil de acreditar quanto a ressurreição, estamos realizando algo que se tornará, no devido tempo, parte do novo mundo de Deus. Todo ato de amor, gratidão e bondade; toda obra de arte inspirada por Deus e pela beleza de sua criação; cada minuto gasto ensinando um criança com sérias deficiências a ler ou a caminhar; cada gesto de cuidado e de atenção, de consolo e de apoio a um ser humano (e a criaturas não-humanas, é claro), cada oração, cada ensinamento conduzido pelo Espírito, cada obra que divulga o evangelho, edifica a igreja, abraça e incorpora a santidade, não a corrupção, e torna o nome de Jesus honrado no mundo – tudo isso terá seu lugar, pelo poder da ressurreição de Deus, na nova criação que ele um dia fará. Essa é a lógica da missão de Deus. A recriação divina de seu maravilhoso mundo, que começa com a ressurreição de Jesus e continua misteriosamente à medida que o povo de Deus vive no poder do Cristo ressurreto e do seu Espírito. Significa que o que fazemos em Cristo e por meio do Espírito no presente não será desperdiçado – permanecerá e será aperfeiçoado no mundo de Deus.”

Deus está trazendo seu futuro, o futuro em que ele endireitará o mundo, por meio de Jesus de Narazé, e quer que o futuro esteja mais e mais envolvido no presente. É por isso que oramos todas as vezes que recitamos o Pai-Nosso: “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. E é por isso que aquele que ora chega a ponto de pedir pão e perdão – acho que é nesse ponto que as questões de justiça se aproximam mais da nossa aldeia global (228).

 A crença geral entre os primeiros cristãos primitivos era que Jesus já havia demonstrado publicamente ser o Messias de Israel e o Senhor verdadeiro do mundo por meio da ressurreição. Essa crença faz parte da própria essência do cristianismo. Se de fato cremos nisso e oramos para que o reino de Deus se estabeleça assim na terra como no céu, como ele mesmo nos ensinou, não podemos fechar os olhos diante de toda a injustiça presente no mundo. Devemos reconhecer que as coisas só serão verdadeiramente endireitadas no último dia, e assim evitar um triunfalismo arrogante, que imagina ser possível edificar o reino por meio de nossos próprios esforços, sem a necessidade do grande ato divino da nova criação. Mas também devemos concordar com a visão de que fazer justiça no mundo é parte da tarefa cristã, e rejeitar o erro que diz que não devemos sequer tentar fazer alguma mudança (229).

Seguindo essa teologia da nova criação, pode levar as pessoas a descobrirem, entusiasmadas, que o evangelho faz sentido, que elas realmente acreditam nele e que seus pensamentos e emoções estão sendo transformados. Ao se converter (dar meia volta e mudar de direção), se regenerar (que significa novo nascimento) e fazer parte da família cristã e refletir o caráter de Jesus esse pessoa está respirando um pouco da “nova criação” – essa nova criação que começou a acontecer na ressurreição de Jesus, e que se completará quando Deus fizer os novos céus e a nova terra e nos ressuscitar para partilharmos com ele desse novo mundo. Paulo colocar da seguinte maneira: “Se alguém está em Cristo – é nova criatura!” (2Co 5.17). O entendimento correto disso leva a evitar três problemas que ocorrem geralmente no evangelismo:
1) as pessoas precisam entender que para se tornar cristãs elas não precisam rejeitar o mundo bom criado por Deus. O que elas precisam é rejeitar a corrupção que tem seduzido o mundo e os indivíduos.
2) entender o evangelismo como o anúncio do reino de Deus, do senhorio de Jesus e da consequente nova criação evita desde o início qualquer sugestão de que o que realmente importa é que o novo cristão tenha um relacionamento pessoal com Deus ou com Jesus. (Alguns cânticos cristãos modernos parecem sugerir isso com muita frequência, como se Jesus pudesse assumir o lugar da namorada ou do namorado). O projeto do reino de Deus ultrapassa os limites da salvação pessoal para abraçar, ou antes, ser abraçado pelos propósitos de Deus para o mundo inteiro. Junto à “conversão” virá, então, ao menos em principio, o chamado para descobrir onde, dentro do projeto total, podemos dar nossa contribuição.
3) colocar o evangelismo e a conversão no contexto da nova criação significa que o convertido, ou seja, aquele que ouviu a mensagem sobre a soberania e a salvação de Jesus, nunca estará inclinado a pensar que o comportamento cristão – a recusa de tudo que diminui a glória de Deus e o nosso crescimento como seres humanos e a aceitação de tudo que ressalta estas coisas – seja algo opcional ou apenas uma questão de esquivar-se de algumas regras e regulamentos bem estranhos. Falar do senhorio de Jesus e da nova criação, que resulta de sua vitória no calvário e na Páscoa, significa confessá-los como Senhor, crer que Deus ressuscitou dentro os mortos e permitir que ele transforme sua vida inteira (241).

A missão da igreja deve ser moldada pela esperança futura, conforme apresentada no Novo Testamento. Para Wright, uma das tarefas da igreja seria trazer à tona o sentimento de injustiça, colocá-lo em discussão, ajudar as pessoas a articulá-lo e, então, transformá-lo em oração. A igreja deve continuar seu trabalho com a comunidade local, apoiando projetos que visam melhorar as condições de moradia e a construção de novas escolas, estimulando a criação de novas oportunidades de trabalho, participando de campanhas, pressionando prefeituras e conselhos municipais a trabalharem junto com a igreja. Em suma, apoiando a esperança em todos os níveis. Parte do importante do argumento deste livro, portanto, é que, quando isso acontece, não é outra senão a surpreendente esperança do evangelho, a esperança para a “vida após a vida após a morte”. É um resultado direto da esperança para a “vida antes da morte.” (p.243)


Assim, como podemos remodelar nossas igrejas para a missão?

O mundo constituído por espaço, tempo e matéria é o lugar onde as pessoas reais vivem; onde se formam as verdadeiras comunidades; onde é preciso tomar decisões difíceis; onde escolas e hospitais dão testemunho do evangelho enquanto a polícia e as prisões testemunhos o “ainda não”. Espaço, tempo e matéria são onde parlamentos, prefeituras, órgãos civis reguladores e todas as outras organizações funcionam em prol da comunidade com um todo (279).
A igreja renovada pela mensagem da ressurreição de Jesus deve ser uma igreja que age exatamente nesse espaço, tempo e matéria, proclamando-os antecipadamente como um lugar do reino de Deus, do senhorio de Jesus e do poder do Espírito.
Espaço. A igreja que leva a sério o espaço sagrado, não como um lugar retirado do mundo ou um refúgio, mas como um posto avançado, sai direto da adoração no templo para o conselho municipal. Isso não é um trabalho adicional, ou acréscimo à missão da igreja, mas uma tarefa fundamental.
Tempo. Os cristãos que levam a sério o fato de que Jesus é o Senhor do tempo, não separam apenas o domingo como o dia humana e socialmente possível para se celebrar a nova criação de Deus. Porém, mais do que isso, uma igreja assim, lutará para manter um equilíbrio entre adoração e trabalho. A recuperação do tempo como um dom precioso de Deus não é alo para ser acrescentado à missão da igreja, e sim o elemento fundamental.
Material. A igreja deve considerar seriamente o fato de que em Jesus e por meio dele, o Deus criador transformará esse mundo material mais uma vez. Chegará o dia em que a terra se encherá do conhecimento e da glória do senhor, como as águas cobrem o mar, e celebraremos a vinda de Jesus. Devemos lutar aqui agora por justiça. Isso não é algo a ser acrescentado à missão da Igreja, mas o elemento fundamental.
“Quando as pessoas veem a igreja adorando a Deus, fazendo a diferença e realizando as mudanças necessárias no mundo em que vivemos, quando fica claro que as pessoas que participam da ceia com Jesus são as que lutam para pôr fim à fome e à carestia, quando as pessoas percebem que aqueles que oram para que o Espírito atue nelas e por meio delas sãos as pessoas que parecem dispor de quantidade extra de amor e de paciência para cuidar daqueles que estão sofrendo e cujas vidas estão feridas e humilhadas – então passa a ser natural falar de Jesus e encorajar outros a adorá-lo. É assim que as pessoas descobrem o que significa pertencer à família de Deus (...). quando a igreja vive de acordo com o padrão do reino de Deus, a palavra de Deus se espalha poderosamente e o Senhor realiza sua obra.” (281).

Concluindo, “ser cidadão do céu” (Fp 3.20) não significa que vamos “ir para o céu quando morrer”. Como vimos, muitos filipenses eram cidadãos romanos, mas Roma não os queria de volta quando se aposentassem. Esse é o argumento que os quatro evangelhos defendem, cada um a seu próprio modo. Jesus resuscitou; portanto, o novo mundo de Deus já começou. Jesus ressuscitou; portanto, Israel e o mundo foram redimidos. Jesus ressuscitou; portanto, seus seguidores têm uma tarefa a cumprir. E que tarefa é essa? Trazer o estilo de vida do céu para a realidade atual, física e terrena.
“A ressurreição corpórea de Jesus é mais do que uma prova de que Deus realiza milagres ou de que a Bíblia é verdadeira. É mais do que conhecer Jesus em nossa própria experiência. Ela é muito, mas muito mais que a certeza do céu após a morte (Paulo fala de “partir e estar com Cristo”, mas ele enfatiza principalmente a volta em um corpo ressuscitado, para vivermos na nova criação de Deus). A ressurreição de Jesus é o começo do novo projeto de Deus, não de arrebatar pessoas da terra para levá-las ao céu, mas de colonizar a terra com o estilo de vida do céu. É sobre isso que o Pai-Nosso está falando.” (308).
Quando Paulo escreveu seu magnífico capítulo sobre a ressurreição em 1 Coríntios 15, ele não terminou dizendo: “Bem, vamos então celebrar o grandioso futuro que nos aguarda.” Ele concluiu dizendo: “Sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (v.58). quando a ressurreição final acontecer, como o ponto principal da nova criação de Deus, descobriremos que tudo que foi feito no mundo presente por meio do poder da ressurreição de Jesus será celebrado, incluído, e adequadamente transformado.
Temos que olhar para as palavras de Paulo em Romanos 8, e sobre os capítulos finais do evangelho, ou ainda sobre o que João escreveu em Apocalipse 21 e 22 e perceber que a Páscoa é o começo da nova criação de Deus em um mundo surpreendido, e que isso aponta para a renovação, a redenção e o renascimento de toda a criatura. Todo ato de amor, toda ação feita em Cristo e por meio do Espírito, toda a obra de verdadeira criatividade – todas as vezes que a justiça é feita, a paz é conquistada, famílias são curadas, a tentação é vencida, e a verdadeira liberdade é requerida e conquista; todos esses eventos terrenos tomam lugar na longa história de atos que implementam a ressurreição de Jesus e antecipam a nova criação final atuando como sinalizadores de esperança.


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