Um texto bastante equilibrado e historicamente embasado para apresentar pontos contrários à uma certa teologia da prosperidade, mostrando que várias destes "ventos de doutrina" não são nem um pouco novidade.
por Augustus Nicodemus Lopes
A prosperidade financeira obedece a normas, regras e métodos
estabelecidos. Por outro lado, da perspectiva bíblica, a prosperidade é
um dom de Deus. É ele quem concede saúde, oportunidades, inteligência, e
tudo o mais que é necessário para o sucesso financeiro. E isso, sem
distinção de pessoas quanto ao que crêem e quanto ao que contribuem
financeiramente para as comunidades às quais pertencem. Deus faz com que
a chuva caia e o sol nasça para todos, justos e injustos, crentes e
descrentes, conforme Jesus ensinou (Mateus 5:45). Não é possível, de
acordo com a tradição reformada, estabelecer uma relação constante de
causa e efeito entre contribuições, pagamento de dízimos e ofertas e
mesmo a religiosidade, com a prosperidade financeira. Várias passagens
da Bíblia ensinam os crentes a não terem inveja dos ímpios que
prosperam, pois cedo ou tarde haverão de ser punidos por suas
impiedades, aqui ou no mundo vindouro.
Através dos
séculos, as religiões vêm pregando que existe uma relação entre Deus e a
prosperidade material das pessoas. No Antigo Oriente, as religiões
consideradas pagãs estabeleceram milênios atrás um sistema de culto às
suas divindades que se baseava nos ciclos das estações do ano, na busca
do favor dessas divindades mediante sacrifícios de vários tipos e na
manifestação da aceitação divina mediante as chuvas e as vitórias nas
guerras. A prosperidade da nação e dos indivíduos era vista como favor
dos deuses, favor esse que era obtido por meio dos sacrifícios,
inclusive humanos, como os oferecidos ao deus Moloque. No Egito antigo a
divindade e poder de Faraó eram mensurados pelas cheias do Nilo. As
religiões gregas, da mesma forma, associavam a prosperidade material ao
favor dos deuses, embora estes fossem caprichosos e imprevisíveis. As
oferendas e sacrifícios lhes eram oferecidas em templos espalhados pelas
principais cidades espalhadas pela bacia do Mediterrâneo, onde também
haviam templos erigidos ao imperador romano, cultuado como deus.
A
religião dos judeus no período antes de Cristo, baseada no Antigo
Testamento, também incluía essa relação entre a ação divina e a
prosperidade de Israel. Tal relação era entendida como um dos termos da
aliança entre Deus e Abraão e sua descendência. Na aliança, Deus
prometia, entre outras coisas, abençoar a nação e seus indivíduos com
colheitas abundantes, ausência de pragas, chuvas no tempo certo, saúde e
vitória contra os inimigos. Essas coisas eram vistas como alguns dos
sinais e evidências do favor de Deus e como testes da dependência dele.
Todavia, elas eram condicionadas à obediência e só viriam caso Israel
andasse nos seus mandamentos, preceitos, leis e estatutos. Estes
incluíam a entrega de sacrifícios de animais e ofertas de vários tipos, a
fidelidade exclusiva a Deus como único Deus verdadeiro, uma vida moral
de acordo com os padrões revelados e a prática do amor ao próximo. A
falha em cumprir com os termos da aliança acarretava a suspensão dessas
bênçãos. Contudo, a inclusão na aliança, o favor de Deus e a concessão
das bênçãos não eram vistos como meritórios, mas como favor gracioso de
Deus que soberanamente havia escolhido Israel como seu povo especial.
O
Cristianismo, mesmo se entendendo como a extensão dessa aliança de Deus
com Abraão, o pai da fé, deu outro enfoque ao papel da prosperidade na
relação com Deus. Para os primeiros cristãos, a evidência do favor de
Deus não eram necessariamente as bênçãos materiais, mas a capacidade de
crer em Jesus de Nazaré como o Cristo, a mudança do coração e da vida, a
certeza de que haviam sido perdoados de seus pecados, o privilégio de
participar da Igreja e, acima de tudo, o dom do Espírito Santo, enviado
pelo próprio Deus ao coração dos que criam. A exultação com as
realidades espirituais da nova era que raiou com a vinda de Cristo e a
esperança apocalíptica do mundo vindouro fizeram recuar para os
bastidores o foco na felicidade terrena temporal, trazida pelas riquezas
e pela prosperidade, até porque o próprio Jesus era pobre, bem como os
seus apóstolos e os primeiros cristãos, constituídos na maior parte de
órfãos, viúvas, soldados, diaristas, pequenos comerciantes e lavradores.
Havia exceções, mas poucas. Os primeiros cristãos, seguindo o ensino de
Jesus, se viam como peregrinos e forasteiros nesse mundo. O foco era
nos tesouros do céu.
A Idade Média viu a cristandade
passar por uma mudança nesse ponto (e em muitos outros). A pobreza quase
virou sacramento, ao se tornar um dos votos dos monges, apesar de Jesus
Cristo e os apóstolos terem condenado o apego às riquezas e não as
riquezas em si. Ao mesmo tempo, e de maneira contraditória, a Igreja
medieval passou a vender por dinheiro as indulgências, os famosos
perdões emitidos pelo papa (como aqueles que fizeram voto de pobreza
poderiam comprá-los?). Aquilo que Jesus e os apóstolos disseram que era
um favor imerecido de Deus, fruto de sua graça, virou objeto de compra.
Milhares de pessoas compraram as indulgências, pensando garantir para si
e para familiares mortos o perdão de Deus para pecados passados,
presentes e futuros.
A Reforma protestante, nascida em
reação à venda das indulgências, entre outras razões, reafirmou o ensino
bíblico de que o homem nada tem e nada pode fazer para obter o favor de
Deus. Ele soberana e graciosamente o concede ao pecador arrependido que
crê em Jesus Cristo, e nele somente. A justificação do pecador é pela
fé, sem obras de justiça, afirmaram Lutero, Calvino, Zwinglio e todos os
demais líderes da Reforma. Diante disso, resgatou-se o conceito de que o
favor de Deus não se pode mensurar pelas dádivas terrenas, mas sim pelo
dom do Espírito e pela fé salvadora, que eram dados somente aos eleitos
de Deus. O trabalho, através do qual vem a prosperidade, passou a ser
visto, particularmente nas obras de Calvino, como tendo caráter
religioso. Acabou-se a separação entre o sagrado e o profano que subjaz
ao conceito de que Deus abençoa materialmente quem lhe agrada
espiritualmente. O calvinismo é, precisamente, a primeira ética cristã
que deu ao trabalho um caráter religioso. Mais tarde, esse conceito foi
mal compreendido por Max Weber, que traçou sua origem à doutrina da
predestinação como entendida pelos puritanos do século XVIII. Weber
defendeu que os calvinistas viam a prosperidade como prova da
predestinação, de onde extraiu a famosa tese que o calvinismo é o pai do
capitalismo. As conclusões de Weber têm sido habilmente contestadas por
estudiosos capazes, que gostariam que Weber tivesse estudado as obras
de Calvino e não somente os escritos dos puritanos do séc. XVIII.
Atualmente,
em nosso país, a idéia de que Deus sempre abençoa materialmente aqueles
que lhe agradam vem sendo levada adiante com vigor, não pelos
calvinistas e reformados em geral, mas pelas igrejas evangélicas
chamadas de neopentecostais, uma segunda geração do movimento
pentecostal que chegou ao Brasil na década de 1900. A mensagem dos
pastores, bispos e “apóstolos” desse movimento é que a prosperidade
financeira e a saúde são a vontade de Deus para todo aquele que for fiel
e dedicado à Igreja e que sacrificar-se para dar dízimos e ofertas.
Correspondentemente, os que são infiéis nos dízimos e ofertas são
amaldiçoados com quebra financeira, doenças, problemas e tormentos da
parte de demônios. Na tentativa de obter esses dízimos e ofertas, os
profetas da prosperidade promovem campanhas de arrecadação alimentadas
por versículos bíblicos freqüentemente deslocados de seu contexto
histórico e literário, prometendo prosperidade financeira aos dizimistas
e ameaçando com os castigos divinos os que pouco ou nada contribuem.
O
crescimento vertiginoso de igrejas neopentecostais que pregam a
prosperidade só pode ser explicado pela idéia equivocada que o favor de
Deus se mede e se compra pelo dinheiro, pelo gosto que os evangélicos no
Brasil ainda têm por bispos e apóstolos, pela idéia nunca totalmente
erradicada que pastores são mediadores entre Deus e os homens e pelo
misticismo supersticioso da alma brasileira no apego a objetos
considerados sagrados que podem abençoar as pessoas. Quando vejo o
retorno de grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais de
usar no culto a Deus objetos ungidos e consagrados, procurando para si
bispos e apóstolos, imersas em práticas supersticiosas e procurando
obter prosperidade material por meio de pagamento de dízimos e ofertas
me pergunto se, ao final das contas, o neopentecostalismo brasileiro e
sua teologia da prosperidade não são, na verdade, filhos da Igreja
medieval, uma forma de neo-catolicismo tardio que surge e cresce em
nosso país onde até os evangélicos têm alma medieval.
IN: página de Augustus Nicodemus Lopes no facebook
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