terça-feira, 16 de agosto de 2016

"A arrogância do humanismo" de David Ehrenfeld.

Adoro passear em sebos. E quase sempre quando visito um, acabo encontrando preciosidades. Algumas vezes nem sabia que era coisa tão boa até ler a obra. Isso aconteceu com o livro que eu vou comentar com vocês. 
Se chama "A arrogância do humanismo" de David Ehrenfeld. Fui fisgado pelo título; nem sabia quem era o autor. Após comprado o livro, uma passada pelo índice remissivo (aliás, considero livro acadêmico sem índice remissivo ou onomástico um pecado capital), me revela nomes como Tolkien, Lewis, Orwell, Asimov, autores mais acadêmicos como Schumacher, Mumford, e temas como inteligência artificial, capitalismo, espaço, clonagem, medicalização entre outros. 

Só depois de começada a leitura fui pesquisar quem era o autor de tão interessante obra. 
David Ehrenfeld é um professor americano de biologia muito preocupado com biodiversidade, conservação e sustentabilidade, temas que aparecem constantemente ao longo do livro.  
Sua maior consideração é os perigos da tecnologia e da ciência.
Assim ele começa o livro em seu prefácio:

quando vi como a nossa incondicional fé humanística em nossa própria onipotência fornece uma explicação comum para tantas coisas aparentemente diferentes que estão nos acontecendo; quando percebi as terríveis implicações da grande, cada vez maior, discrepância entre a fé na razão e no poder humano que impregna o mundo e a realidade viva da condição humana; então escrevi este livro. 
O interessante é que o autor não é cristão, ele inclusive diz ter críticas ao cristianismo, mas muita de suas críticas ao espírito moderno correm em paralelo ao que alguns cristãos apontam, como Jacques Ellul, Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd e Egbert Schuurman, entre outros. Ehrenfeld ressalta que é "severo com a tradição judaica-cristã", mas diz não acreditar que as fontes bíblicas sancionem a arrogância humana para com a natureza. 
O humanismo, apesar de não aparentar ser uma religião organizada na forma como a maioria de nós entende religião, segundo Ehrenfeld possui uma natureza religiosa. Aqui ele ecoa, sem diálogo direto, autores que seguiram Dooyeweerd e sua crítica à falsa neutralidade religiosa do pensamento filosófico. 
Mas para Ehrenfeld, qual seria o âmago da religião do humanismo?
Para ele, seria uma fé suprema na razão humana, quer dizer, o ser humano seria capaz de enfrentar e resolver os muitos problemas com que ele se defronta, assim como capaz de reordenar o mundo da Natureza e reformular os assuntos de homens e mulheres de modo que a vida humana prospere. 
E vai além: 
"assim como o humanismo está comprometido com uma fé incondicional no poder da razão, também rejeita outras afirmações de poder, inclusive o poder de Deus, o poder de forças sobrenaturais e até o poder não dirigido da Natureza associado com o cego acaso." (p.3)
Como a inteligência humana é a chave para o êxito humano, a principal tarefa dos humanistas é afirmar o seu poder e proteger as suas prerrogativas toda vez que são questionadas ou desafiadas. 
Assim, o capítulo 1 é uma introdução ao pensamento humanístico, enquanto o capítulo 2 trata de apresentar os "mitos" mais comuns dentro do humanismo, mas sem criticá-los, reservando isso para o terceiro capítulo, chamado "realidade". Os temas presentes são a busca por superar a limitação e falibilidade humanas com relação à mente, ao corpo e ao meio ambiente. 
Um dos argumentos interessantes na crítica às novidades científicas buscando aperfeiçoar a vida biológica na terra é que a evolução teve bilhões de anos para harmonizar os organismos com seus meio ambientes e com suas "novas" partes. Agora queremos introduzir a ciência de criar novos alimentos e novos órgãos sem nem ao menos poder mesurar as consequências. Nossa vida e nossa ciência não é nada perto da imensidão temporal que se estende no passado. E mesmo assim nos consideramos aptos a fazer decisões que podem transformar todo um ecossistema. A arrogância não tem medidas! 
A busca humanística por controle tem sua maior expressão no culto à máquina.
Devemos cultuar a máquina se desejamos manter a ficção de que o mito do controle é verdadeiro. Os seres humanos não são deuses, apesar da ocasional característica divina que aflora à superfície para nos deixar atônitos por algum tempo. O testemunho de nossa tecnologia, por si só, diz-nos isso. Contudo, a tecnologia é o nosso principal manancial divino, o nosso caudal de milagres. Nenhuma religião pode sobreviver se não afirmar seus próprios milagres, de modo que o nosso culto da máquina tem um aspecto reconfortante - no meio do perigo, dizemos uns aos outros que não há nada a temer (p. 79).
Não quero me alongar muito, apesar do livro conter muitas conclusões interessantes. Uma das grandes qualidades do livro é a capacidade de o autor conjugar conclusões de estudos científicos com literatura, deixando a leitura muito prazerosa. 
Mas um último ponto de reflexão sobre a arrogância do humanismo é sobre a ênfase desmedida na razão humana, desconsiderando qualquer coisa relacionada à emoção (no capítulo 4, "Emoção e Razão"). Nesse sentido vale a pena ler a citação que Ehrenfeld faz do filósofo e teólogo Jacques Maritain:

Mas entre fé e razão, como entre graça e natureza, não existe separação (...). Fosse qual fosse a obtusidade de nosso ancestrais e a de muito de nós as coisas são assim, e assim é a vida: existe distinção sem separação. 
A razão tem o seu próprio domínio, e a fé o dela. Mas a razão pode penetrar no domínio da fé levando-lhe a sua necessidade de fazer perguntas, o seu desejo de descobrir a ordem interna do verdadeiro e a sua aspiração à sabedoria - o que é o que acontece com a teologia. E a fé pode penetrar no domínio da razão, levando-lhe a ajuda de uma luz e de uma verdade que são superiores e elevam a razão em sua própria ordem que é o que acontece com a filosofia cristã (p. 134-35).  


Enfim, uma grata surpresa. Um ótimo livro e com certeza procurarei mais livros desse autor. 

3 comentários:

  1. Obrigado por essa ótima resenha. Esse livro foi citado pelo Stephen A. Hoeller em "Gnosticismo", e acho que a última citação que você coloca de certa forma ajuda a entender a conexão entre uma obra e outra.

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  2. li sua resenha em 2021 em meio a uma prazerosa redescoberta da teologia e da filosofia cristã

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