Adoro passear em sebos. E quase sempre quando visito um, acabo encontrando preciosidades. Algumas vezes nem sabia que era coisa tão boa até ler a obra. Isso aconteceu com o livro que eu vou comentar com vocês.

Só depois de começada a leitura fui pesquisar quem era o autor de tão interessante obra.
David Ehrenfeld é um professor americano de biologia muito preocupado com biodiversidade, conservação e sustentabilidade, temas que aparecem constantemente ao longo do livro.
Sua maior consideração é os perigos da tecnologia e da ciência.
Assim ele começa o livro em seu prefácio:
quando vi como a nossa incondicional fé humanística em nossa própria onipotência fornece uma explicação comum para tantas coisas aparentemente diferentes que estão nos acontecendo; quando percebi as terríveis implicações da grande, cada vez maior, discrepância entre a fé na razão e no poder humano que impregna o mundo e a realidade viva da condição humana; então escrevi este livro.
O interessante é que o autor não é cristão, ele inclusive diz ter críticas ao cristianismo, mas muita de suas críticas ao espírito moderno correm em paralelo ao que alguns cristãos apontam, como Jacques Ellul, Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd e Egbert Schuurman, entre outros. Ehrenfeld ressalta que é "severo com a tradição judaica-cristã", mas diz não acreditar que as fontes bíblicas sancionem a arrogância humana para com a natureza.
O humanismo, apesar de não aparentar ser uma religião organizada na forma como a maioria de nós entende religião, segundo Ehrenfeld possui uma natureza religiosa. Aqui ele ecoa, sem diálogo direto, autores que seguiram Dooyeweerd e sua crítica à falsa neutralidade religiosa do pensamento filosófico.
Mas para Ehrenfeld, qual seria o âmago da religião do humanismo?
Para ele, seria uma fé suprema na razão humana, quer dizer, o ser humano seria capaz de enfrentar e resolver os muitos problemas com que ele se defronta, assim como capaz de reordenar o mundo da Natureza e reformular os assuntos de homens e mulheres de modo que a vida humana prospere.
E vai além:
"assim como o humanismo está comprometido com uma fé incondicional no poder da razão, também rejeita outras afirmações de poder, inclusive o poder de Deus, o poder de forças sobrenaturais e até o poder não dirigido da Natureza associado com o cego acaso." (p.3)
Como a inteligência humana é a chave para o êxito humano, a principal tarefa dos humanistas é afirmar o seu poder e proteger as suas prerrogativas toda vez que são questionadas ou desafiadas.
Assim, o capítulo 1 é uma introdução ao pensamento humanístico, enquanto o capítulo 2 trata de apresentar os "mitos" mais comuns dentro do humanismo, mas sem criticá-los, reservando isso para o terceiro capítulo, chamado "realidade". Os temas presentes são a busca por superar a limitação e falibilidade humanas com relação à mente, ao corpo e ao meio ambiente.
Um dos argumentos interessantes na crítica às novidades científicas buscando aperfeiçoar a vida biológica na terra é que a evolução teve bilhões de anos para harmonizar os organismos com seus meio ambientes e com suas "novas" partes. Agora queremos introduzir a ciência de criar novos alimentos e novos órgãos sem nem ao menos poder mesurar as consequências. Nossa vida e nossa ciência não é nada perto da imensidão temporal que se estende no passado. E mesmo assim nos consideramos aptos a fazer decisões que podem transformar todo um ecossistema. A arrogância não tem medidas!
A busca humanística por controle tem sua maior expressão no culto à máquina.
Devemos cultuar a máquina se desejamos manter a ficção de que o mito do controle é verdadeiro. Os seres humanos não são deuses, apesar da ocasional característica divina que aflora à superfície para nos deixar atônitos por algum tempo. O testemunho de nossa tecnologia, por si só, diz-nos isso. Contudo, a tecnologia é o nosso principal manancial divino, o nosso caudal de milagres. Nenhuma religião pode sobreviver se não afirmar seus próprios milagres, de modo que o nosso culto da máquina tem um aspecto reconfortante - no meio do perigo, dizemos uns aos outros que não há nada a temer (p. 79).
Não quero me alongar muito, apesar do livro conter muitas conclusões interessantes. Uma das grandes qualidades do livro é a capacidade de o autor conjugar conclusões de estudos científicos com literatura, deixando a leitura muito prazerosa.
Mas um último ponto de reflexão sobre a arrogância do humanismo é sobre a ênfase desmedida na razão humana, desconsiderando qualquer coisa relacionada à emoção (no capítulo 4, "Emoção e Razão"). Nesse sentido vale a pena ler a citação que Ehrenfeld faz do filósofo e teólogo Jacques Maritain:
Mas entre fé e razão, como entre graça e natureza, não existe separação (...). Fosse qual fosse a obtusidade de nosso ancestrais e a de muito de nós as coisas são assim, e assim é a vida: existe distinção sem separação.
A razão tem o seu próprio domínio, e a fé o dela. Mas a razão pode penetrar no domínio da fé levando-lhe a sua necessidade de fazer perguntas, o seu desejo de descobrir a ordem interna do verdadeiro e a sua aspiração à sabedoria - o que é o que acontece com a teologia. E a fé pode penetrar no domínio da razão, levando-lhe a ajuda de uma luz e de uma verdade que são superiores e elevam a razão em sua própria ordem que é o que acontece com a filosofia cristã (p. 134-35).
Enfim, uma grata surpresa. Um ótimo livro e com certeza procurarei mais livros desse autor.
Obrigado por essa ótima resenha. Esse livro foi citado pelo Stephen A. Hoeller em "Gnosticismo", e acho que a última citação que você coloca de certa forma ajuda a entender a conexão entre uma obra e outra.
ResponderExcluirli sua resenha em 2021 em meio a uma prazerosa redescoberta da teologia e da filosofia cristã
ResponderExcluirque bom que gostou. gostei demais desse livro.
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