No final do século a Europa vivia uma época calamitosa e, mais do que nunca, pareceu necessário buscar refúgio, simultaneamente contra os males desta vida e contra o inferno. O culto dos santos, por exemplo, nunca foi tão difundido quanto no final do século XV e começo do século XVI. Eram disputadas suas relíquias; eram padroeiros de inúmeras confrarias; suas imagens se multiplicavam quase lhes conferindo valor de talismãs.
Os santos não protegiam apenas contra a doença e
a morte, davam também “garantias para o além”. Venerar as relíquias deles, e
com maior razão as de Jesus e da Virgem Maria, dava direito a indulgências (=
perdão). Estas tiveram, ao findar da Idade Média, um sucesso extraordinário. O
pecador, que recaía incessantemente nas mesmas faltas, não poderia afinal
escapar do inferno passando uma espécie de cheque sobre os merecimentos de
Jesus, Maria e dos santos? Bastava apresentar esse cheque ao Soberano Juiz, na
ocasião de prestar contas.
A doutrina católica do purgatório nasceu na Idade Média, no século XIII, sendo posteriormente reforçada, inclusive no Concílio de Trento, o movimento contra-reforma.
Inicialmente a
igreja não ensinava que se devia pagar uma esmola para se obter a indulgência.
Porém, as populações do ocidente medieval, exaltadas, pouco instruídas, por
vezes à beira do desespero, acreditavam ser possível comprar a salvação. (DELUMEAU,
Nascimento e afirmação da reforma, p. 60-61; LE GOFF, Jacques, The birth of
purgatory). Contudo, ficaram com uma duvida, e essa duvida é exatamente o
angustia da Idade Média agonizante. É ela que explica o sucesso de Lutero.
O final da Idade Média era permeado
por uma confusão religiosa. Os fiéis se sentiam mal enquadrados, mal
protegidos, abandonados até pela Igreja. Havia superabundância de padres, e
contudo faltavam pastores, indivíduos que guiassem o povo. A acumulação de
benefícios e uma série de abusos tiveram como conseqüência o abandono freqüente
do ministério paroquial a vigários mediocremente instruídos e inferiores ao seu
cargo.
Uma
das tendências da piedade do século XV é um sentimento popular, afastado da
liturgia tradicional. Não teriam como ser diferente: poucos compreendiam a
missa rezada em latim “O povo cristão andava à deriva”.
Mas também, o
fim, ou “outono da Idade Média”, como foi nomeado o período por Johan Huizinga,
que discorda de uma noção de decadência, vê surgir um espírito de
individualismo, juntamente com uma afirmação do espírito laico (secular, não
religioso). A piedade pessoal tem como exemplar a obra A imitação de cristo, de
Tomás de Kempis. O individualismo é simbolizado pelo aparecimento da pintura de
retratos e auto-retratos (BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na
Itália).
A ascensão da burguesia e de
artesões, e mais geralmente do elemento laico, numa civilização mais urbana, o
aparecimento do luxo, a afirmação de um certo sentimento nacional, a geral
confusão dos espíritos num clima de insegurança, em suma, os defeitos da Igreja
geravam uma espécie de anarquismos cristão.
Na vida cotidiana, tratava-se Deus
com uma familiaridade contra a qual o protestantismo reagirá vigorosamente. O
domínio da fé achava-se invadido por uma onda de elementos profanos. E em um
ambiente desses a figura do padre foi a primeira a se distorcer. Houve desvios
morais de toda sorte entre o clero.
No baixo clero, numerosos padres viviam
em concubinato e tinham filhos bastardos. Vestidos como qualquer um, os padres
freqüentavam tavernas, tomavam parte em danças e participavam da vida
cotidiana. Este baixo clero vivia numa situação miserável e muitas vezes viviam
de vender sacramentos, principalmente o batismo e a confissão.
Caminho aberto para os pré-reformadores, saídos do seio da própria igreja católica. Como veremos no post a seguir.
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