terça-feira, 12 de março de 2013

A maldição de Noé, a África e os negros


Resposta à:



          Carlos Orsi escreveu este texto após a eleição de Marco Feliciano para presidir Comissão dos Direitos Humanos da Câmara.
          Primeiramente quero dizer que realmente não concordo com as frases de Marco Feliciano, e deixar claro que ele não representa TODOS os evangélicos e sim uma parcela; talvez ele represente ele mesmo...
Entretanto o texto “A maldição de Noé, a África e os negros” tem alguns problemas com relação à interpretação da Bíblia. Deve-se apontar que apesar de um indivíduo que se diz evangélico afirmar uma interpretação da Bíblia, isto não quer dizer que esta interpretação seja a visão de todos os evangélicos. No caso do pastor Feliciano, suas afirmações passam muito longe do que estudiosos da Palavra acreditam. Mas o blogueiro Carlos Orsi também está equivocado em algumas afirmações e acho que ele também deveria rever seu conhecimento da Bíblia. Sua visão de “contradições bíblicas” revela como as pessoas estão desinformadas com relação ao texto bíblico (tanto ateus quanto “crentes”, infelizmente). Apresento aqui, alguns contra-argumentos à postagem de Carlos Orsi. 
                
          1º. Argumento: o dilúvio bíblico é uma “fanfic”, baseado no épico de Gilgamesh.
        Contra-argumento: Aqui há um desconhecimento de ambas as narrativas. Apesar de outras culturas antigas terem histórias semelhantes, como o outro exemplo da narrativa suméria de Atrasais. Embora existam algumas correspondências notáveis, as diferenças em detalhes e propósitos são importantes. Por exemplo, na história de Gilgamesh, a arca é um cubo perfeito, de aproximadamente 59 metros de lado; uma embarcação deste tipo afundaria em águas turbulentas. A arca de Noé possuía a forma apropriada para navegação, uma embarcação longa e retangular (135 metros de comprimento por 22,5 metros de largura). Nas narrativas não-bíblicas, o propósito do dilúvio é livrar a terra dos incômodos e ruidosos humanos, cuja população explosiva perturba o sono dos deuses, e o único sobrevivente recebe dos mesmos deuses a imortalidade. Em contraste, a narrativa bíblica apresenta uma motivação altamente moral para o dilúvio, pelo qual Deus julga o pecado e também purifica a Terra. Além disso, Noé é mortal, e Deus preserva a família humana através dele.

          2º. Argumento: a narrativa do cap. 7 de Genesis é uma fusão de duas versões conflitantes.
         Contra-argumento: Quem não está familiarizado com o estilo literário do Oriente Médio supõem que as repetições na narrativa bíblica sejam colagens de duas tradições conflitantes. A ordem de levar “dois” de cada espécie (Gn 6.19,20) é uma instrução geral de ajuntar os animais em pares reprodutivos. A seguir temos as instruções especificas, para tomar “sete” desses pares de animais puros, que serão usados para ofertas (Gn 8.20) e somente um par de animais que são impuros (Gn 7.2,3.). Neste caso, a repetição revela que havia mais de um objetivo para reunir os animais.

          3º argumento. Problema da duração do dilúvio.  O verso 17 [de Gênesis 7] diz que foram 40 dias, mas o verso 24 diz que foram 150 dias.  
           Contra-argumento: A cronologia do dilúvio pode parecer confusa, mas é coerente. Noé esperou na arca durante sete dias antes que começasse os quarenta dias de chuva. As águas “prevaleceram” por 150 dias (cinco meses) de destruição (v.24). Isto inclui os 40 dias de chuva, seguidos por 110 dias, durante os quais as águas começaram a baixar, até que a arca repousou em algum lugar nos montes de Ararate.
          Isto não é uma interpretação “caridosa” como Carlos Orsi diz. É uma interpretação exegética básica: em Genesis 7.17 a frase é: “durante quarenta dias houve o dilúvio sobre a terra; cresceram as águas e ergueram a arca.”. Em Gn 7.24, está escrito: “a enchente sobre a terra durou centro e cinqüenta dias.” (Biblia de Jerusalém). Não há contradições. Uma coisa é chover durante um período de tempo; outra é a duração da enchente sobre a terra, até que a água escoasse.
Se seguíssemos a hipótese de Orsi, de que houve um redator/editor final do Pentateuco, teríamos que nos perguntar: como pode haver contradições em um mesmo capítulo? Tal redator/editor não procuraria sanar essas aparentes contradições?

4º argumento. Autoria do Pentateuco. “dúvidas sobre se Moisés sequer teria existido, quanto mais se teria tido condições de escrever cinco livros onde, entre outras coisas, são narrados sua morte e sepultamento.” “A idéia mais aceita hoje, entre estudiosos que não têm uma agenda sectária para defender, é a de que os livros foram escritos por pelo menos quatro diferentes autores -- ou grupos de autores, cada grupo partilhando de uma ideologia e de uma teologia particular -- e os textos posteriormente fundidos por um redator ou editor.”
Contra-argumento: O Pentateuco foi escrito séculos atrás em uma língua diferente, em uma cultura diferente e em uma terra diferente. Os críticos argumentam que eles podem decidir exatamente o que um escritor quis ou não dizer, e nessa base, determinar que parte do documento pertence ou não pertence a ele.  Em outras palavras, os críticos estão baseando seus argumentos na sua própria habilidade de ler um documento que tem 3000 anos, dividi-lo dentro de grupos de utilização de palavras, e então afirmar divisões ocultas e autores separados. Isto é o que faz a Hipótese Documentária, que defende que quatro autores compuseram o Pentateuco e procuram separar as diferentes fontes.  Entretanto, esta é uma hipótese (e nada recente), e como tal deve não deve ser levantada como uma bandeira de certeza.
Moisés - Rembrant

Foi com o filósofo holandês Benedict Spinoza, no século XVII, que se começou a questionar a autoria mosaica. A hipótese documental foi se desenvolvendo até que Julius Welhausen trouxe este conceito para círculos intelectuais na Europa e na América do Norte. Welhausen popularizou a noção de que os cinco primeiros livros da Bíblia foram escritos por várias pessoas.
Outros problemas alegados:
. Narração da morte e sepultamento de Moisés: isto poderia tranquilamente ter sido escrito pelo seu sucessor. Muitos estudiosos, “que não tem uma agenda sectária para defender”, aceitam que o capítulo final do deuteronômio foi um adendo de Josué ou de outro próximo do círculo de Moisés.
. Moisés pode muito provavelmente ter compilado, ao invés de composto, o relato de Genesis. Há indicação que Genesis foi uma compilação de documentos familiares e de história oral que foram cuidadosamente passados adiante. Cada seção foi anexada com uma frase: “estas são as origens”, “estas são as gerações”;  frases que ocorrem ao longo do Genesis (2.4; 5.1; 6.9; 10.1,32; 11.10,27; 25.12,19; 36.1; 37,2) e que as interligam como uma série de registros familiares e genealogias. Algumas vezes, as narrativas são até mesmo chamadas “livros” (5.1, Almeida corrigida e revisada fiel). Como líder dos judeus, Moisés poderia ter tido acesso a estes registros familiares da história passada e poderia tê-los compilado na forma como nós conhecemos o livro de Genesis.
. Críticos tem argumentado que nomes diferentes de Deus em diferentes passagens indicam diferentes autores. Só que mudanças de nomes ocorrem no Genesis de forma enviesada dentro do mesmo capítulo ou seção, levando a algumas incríveis dessecações do texto. Mesmo entre os favoráveis da Hipótese Documental não conseguem concordar onde desenhar as linhas que dividem as diferentes seções. A explicação do porque de diferentes nomes de Deus usados reside no que se quer enfatizar. O termo “Elohim”, majestoso, é uma palavra apropriada quando se esta falando de criação, como em Genesis 1. “Yahweh”, o que faz aliança, é mais apropriado quando Deus se relaciona com pessoas, como em Genesis 2-3. [Moisac Authorship of Pentateuch. IN: Geisler, Norman L. Baker encyclopedia of Christian apologetics, 1999, Baker Books, Grand rapids.]. Mais uma informação: o Oxford Biblie Commentary, uma edição "secular" de comentário da Bíblia, apresenta uma posição dúbia com relação à hipótese documental. No comentário geral do Pentateuco, é apoiada esta tese, já no comentário específico de Gênesis, R. N. Whybray diz que a hipótese documentária tem encontrado forte oposição nos últimos vinte anos; e nenhuma das teorias alternativas que tem sido propostas tem encontrado aceitação geral. O próprio autor não é muito favorável a este teoria e pouco a utiliza em seu comentário. Portanto, entre críticos não cristãos não há uma unanimidade com relação à hipótese documental (The Oxford Bible Commentary, 2001, p. 38 em diante). 
Muito mais poderia se falar sobre a autoria mosaica do Gênesis, mas podemos parar por aqui. (se tiver dúvidas, leia: Mosaic Authorship of the Pentateuch. IN: http://www.apologeticspress.org/apcontent.aspx?category=13&article=36).
Devemos passar mais tempo no cerne da argumentação do post de Carlos Orsi:

4º argumento: a maldição lançada por Noé sobre o neto, Canaã.
Contra-argumento: Quem se dá ao trabalho de ler Genesis 9.18-29 sabe que não há nenhuma base para uma maldição sobre Cam nesta passagem. A maldição foi para Canaã, e é por causa de seu comportamento e não por causa da sua etnia. O mal-entendido e abuso de Gênesis 9,18-29 ilustra o que é a responsabilidade de interpretar corretamente as Escrituras. A ideia errônea de que há uma maldição sobre Cam não é culpa da Bíblia. Outro detalhe bem importante: os cananitas eram caucasianos, brancos.  
No mínimo, é uma pobre exegese e reflete a falta de conhecimento dos estudiosos bíblicos. Usado em um sentido racista, essa ideia errônea é um lembrete da ingenuidade e perversidade com que os seres humanos encontram maneiras de justificar para si mesmos e para os outros seu pecado.
Carlos Orsi está correto quando afirma associação entre Cam (pai de Canaã) e a raça negra serviu a uma motivação política que vem de fora do contexto bíblico: justificar a escravidão dos negros pelos europeus. Ela foi um argumento forte, principalmente, entre os povos protestantes de língua inglesa e, mais ainda, no sul escravocrata dos EUA pré-guerra civil.
Concordo com Carlos Orsi, que quem utiliza este tipo de argumento precisa estudar. Mas, este não é um argumento da bancada evangélica, como aponta o blogueiro. Foi uma frase esparsa de um indivíduo e isto não representa a totalidade do pensamento de uma categoria. Veja um exemplo: o deputado Jean Wyllys certa vez disse: “Defendo, sim, o direito de qualquer pessoa poder dispor do seu corpo da forma que bem entender - inclusive as crianças, pois estas têm as mesmas necessidades que os adultos e não são propriedades de ninguém.” Bom, sem entrar nesta polêmica, mas parece que o deputado estava afirmando que as crianças poderiam assumir responsabilidades de adultos, elas poderiam se casar, assinar contratos, e, inclusive ter relações sexuais. Fica a questão: o deputado Jean Wyllys representa toda a categoria LGTBS? Suas frases representam o pensamento de todo um grupo? Acho que fica difícil concordar com isso.
Mas, fechando, voltando a questão da maldição de Cam. A interpretação de que houve uma relação homossexual entre Noé e Cam é um tanto quanto forçada. O texto simplesmente não dá subsídios para essa interpretação. O texto diz: Gn 9.20-22:
“E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai.”
Qualquer leitor com um mínimo de percepção vê que não há nenhuma alusão à sexo. É uma sugestão esdrúxula, já que “ver a nudez do seu pai” aparece também, de maneira negativa, referindo-se à Sem e Jafé; e aqui mais claramente se trata de algo relacionado à visão e não ao sexo.
A explicação do porque a praga recaiu sobre o neto, Canaã e não sobre Cam é que Cam havia sido abençoado por Deus anteriormente e Noé não podia simplesmente cancelar a benção, portanto amaldiçoou a descendência de Cam.

          Portanto, o que Carlo Orsi nos apresenta é uma critica pedestre dos textos bíblicos. É um grande desconhecimento que paira sobre muitos que criticam o texto bíblico, tentando apontar suas aparentes contradições. Seus argumentos são frágeis, procuram contradições e logo se alegram em encontrar algo com que possa acusar os seguidores deste Livro. Uma sugestão para Orsi: atualize suas fontes de exegese da Bíblia. 



Bibliografia:
Biblia de Estudo defesa da fé. CPAD
Archaeological Study Bible. Zondervan.
Geisler, Norman L. Baker encyclopedia of Christian apologetics, 1999, Baker Books, Grand rapids

Um comentário:

  1. A semelhança entre a história de Gilgamesh e a arca de noé é mais um indício de que esta história realmente aconteceu. É estranho alguém chegar a conclusão de que se mais pessoas, de diferentes culturas, conhecem a história é porque é falsa. Pela lógica é justamente o contrário.Tanto a epopéia quanto a outra foram registros da história oral, que podem ou não ter sofrido alterações, em maior ou menor nível, justamente pelo caráter da história oral. Aí cabe aos leitores julgar qual delas está mais perto da realidade. Como vc coloca, as dimensões e formato da Arca, a pontualidade dos locais como o monte Ararat, e é claro, qual é o Deus que permanece vivo até hoje.

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