quinta-feira, 12 de abril de 2018

Homo Deus - Yuval Noah Harari


   Muita gente falando sobre essa obra, figurando nas listas dos mais vendidos até que eu resolvi dar uma conferida; li nas férias de dezembro de 2016 e fiquei postergando uma resenha. Já quero preparar quem estiver lendo de que se trata de uma resenha bem pessoal e não um texto do tipo “porque você não deve passar dessa vida sem ler esta obra”; está mais para “pontos que se deve ter em mente ao ler”.
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   Yuval Noah Harari e eu temos algumas coisas em comum: somos historiadores e amamos estudar ciência; mas aqui acabam as semelhanças. Ele é bem mais famoso que eu e contrastamos bastante em nossa visão de ciência e tecnologia.
Harari é um excelente escritor e possui uma capacidade imensa de reunir diversos conceitos e temáticas em algo mais ou menos coeso, o que não é muito fácil de realizar em temáticas que ultrapassam milhares de anos, como em sua obra anterior, Sapiens.
   Já em Homo Deus, que leva o subtítulo Uma breve história do amanhã, Harari persegue a evolução humana e como ela desenvolveu habilidades que lhe possibilitou tornar-se a espécie dominante.
   As grandes partes do livro se dividem em: Homo sapiens conquista o mundo; homo sapiens dá significado ao mundo; homo sapiens perde o controle.
   Um dos principais temas que perpassam toda a obra é a noção de transcendência, apesar de este termo não aparecer diretamente. Mas, como veremos através de citações retiradas da obra, fica evidente a adesão do historiador à essa ideia.
Isso fica manifesto já no primeiro capítulo, intitulado “A nova agenda humana”, que dá o tom do livro:
O sucesso alimenta a ambição, e nossas conquistas recentes estão impelindo o gênero humano a estabelecer objetivos ainda mais ousados. Depois de assegurar níveis sem precedentes de prosperidade, saúde e harmonia, e considerando tanto nossa história pregressa como nossos valores atuais, as próximas metas da humanidade serão provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade. Reduzimos a mortalidade por inanição, a doença e a violência; objetivaremos agora superar a velhice e mesmo a morte. Salvamos pessoas da miséria abjeta; temos agora de fazê-las positivamente felizes. Tendo elevado a humanidade acima do nível bestial da luta pela sobrevivência, nosso propósito será fazer dos humanos deuses e transformar o Homo sapiens em Homo deus.
    Nessa concepção de Homo deus, fica clara a busca por transcender as limitações físicas do homo sapiens, através da ciência e da tecnologia:
Um dia nosso conhecimento será tão vasto e nossa tecnologia tão avançada que conseguiremos destilar o elixir da juventude eterna, o elixir da felicidade verdadeira e qualquer outra droga que possamos vir a desejar — e nenhum deus irá nos deter.” (cap 6).
   Na busca por transcender, vejo que muitas vezes Harari beira uma arrogância humanista (ver minha resenha de David Ehrenfeld. A arrogância do humanismo), a “religião” moderna que ele mesmo critica na parte final de seu livro: temos (ou teremos) todas as respostas para nossos problemas; problemas estes que se reduzem a questões meramente técnicas:
A ciência e a cultura modernas têm uma visão totalmente diferente da vida e da morte. Não pensam nesta última como um mistério metafísico, e certamente não a veem como a fonte do sentido da vida. Na verdade, para pessoas modernas a morte é um problema técnico que pode e deve ser resolvido (ênfase minha).
         
   E ele vai além nessa visão tecnicista e reducionista da morte:
Na realidade, contudo, humanos não morrem porque uma figura envolta em um manto negro bate em seu ombro, ou porque Deus assim decretou, ou porque a mortalidade é parte essencial de algum grande plano cósmico. Humanos morrem devido a alguma falha técnica. O coração para de bombear sangue. A artéria principal entope com depósitos de gordura. Células cancerosas espalham-se no fígado. Germes multiplicam-se nos pulmões. E de quem é a responsabilidade por todas essas falhas técnicas? Outros problemas técnicos. O coração para de bombear o sangue porque não chega bastante oxigênio ao músculo cardíaco. Células cancerosas se espalham porque uma mutação genética acidental reescreve suas instruções. Germes se instalaram nos meus pulmões porque alguém espirrou no metrô. Nada metafísico. Somente problemas técnicos (cap. 1. A nova agenda humana).
   A visão de Harari está plenamente de acordo com o que Jacques Ellul define como a visão tecnicista. Para o tecnicista, tudo é enxergado pelo viés da tecnologia: às vezes as flores são tão belas que parecem de plástico; o artificial é melhor e pauta a vida. As falhas são “somente problemas técnicos”. Assim, para Harari, basta uma solução técnica para o problema da limitação da vida humana. Aqui ele está ao lado dos grandes transhumanistas, como J. B. S. Haldane.  
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   No capítulo “A nova agenda humana”, ele aponta que “soluções” advirão das pesquisas sobre o câncer, germes, genética e nanotecnologia.
Já no capítulo 6, “A aliança moderna”, o otimismo tecnológico de Harari fica evidente: “Nenhum paraíso nos aguarda após a morte — mas podemos criar um paraíso aqui na Terra e viver nele para sempre, desde que consigamos superar algumas dificuldades técnicas”.
   Em diversos momentos ele apresentar uma visão [equivocada] de que a ciência está em contraposição ou em guerra com a religião. Por exemplo, no início do capítulo “A epifania humana”, ele diz que as teorias de Darwin nos privaram de nossas almas e que isso torna as religiões ultrapassadas. No capitulo 5, “O estranho casal”, ele afirma que “ciência e religião são como marido e mulher que, após quinhentos anos de aconselhamento matrimonial, não se conhecem.”
   No final do capítulo ele procura aliviar essa afirmação, afirmando que um acordo entre religião e ciência produziu uma religião específica, o humanismo, o que podemos concordar em partes. A secularização que se fortaleceu no século XIX pretendeu criar uma sociedade livre da religião, mas ao buscar secularizar noções religiosas, se tornou tão religiosa quanto. A crença de que a ciência e tecnologia têm todas as respostas, por exemplo, acaba caindo num cientificismo fundamentalista.
   Curioso que um autor que luta tanto para acabar com “mitos” seja um grande propagador deles: de que a ciência e a religião estão em conflito. Alvin Plantinga e Alister McGrath, entre muitos outros, têm constantemente assinalado o absurdo dessa afirmação. Uma boa obra neste sentido é Galileu vai para a prisão e outros mitos sobre ciência e fé organizada por Ronald Numbers.      
   Harari é o Richard Dawkins da disciplina da história. E isso não é um elogio. A definição dele de religião, neste mesmo capítulo 5, está permeada de um ranço marxista: “Entretanto, a religião é criada por humanos, e não por deuses, e é definida por sua função social, e não pela existência de deidades. Religião é qualquer coisa que confira legitimidade sobre-humana a estruturas sociais humanas. A religião legitima normas e valores humanos ao alegar que eles refletem leis sobre-humanas.”
   Para não dizer que o autor somente critica a religião, nesse capítulo 5 ele chega a afirmar que orientações éticas somente podem ser fornecidas pela religião, e não pela ciência. Também no capítulo 7 ele afirma que a ciência não pode lidar com valores e significado. Mesmo assim, ele tenta demonstrar que a ciência pode ter um papel em decisões éticas, como a busca pela felicidade, esboçando uma ética puramente utilitarista.
         Ele é honesto também ao afirmar que
Sem a mão condutora de alguma religião, é impossível manter a ordem social em grande escala. Mesmo universidades e laboratórios precisam de um suporte religioso. A religião provê a justificativa ética para a pesquisa científica e em troca influencia a agenda científica e o uso das descobertas científicas. Daí não se poder compreender a história da ciência sem levar em conta as crenças religiosas. Os cientistas raramente estendem-se quanto a esse fato, mas a própria Revolução Científica começou em uma das sociedades mais dogmáticas, intolerantes e religiosas da história.
    Ele está correto sobre o local em que surgiu a Revolução Científica, mas denominá-la como uma das mais dogmáticas, intolerantes e religiosas da história é algo que não se preocupa em qualificar.
Também, quando se trata dos primórdios da Revolução Científica e o papel da religião, eu vejo muitos autores menosprezarem o papel do cristianismo e exaltarem o papel do Islã. Pra mim é algo paradoxal. É o exemplo de Jack Goody, em “Renascimento”, obra na qual se tenta relativizar o impacto do pensamento cristão medieval para o surgimento da ciência. Por seu lado, Harari apresenta o mundo árabe, detidamente Cairo e Istambul por volta de 1600, como um paraíso do ponto de vista científico e político, onde diversos povos podiam conviver pacificamente, o que não ocorria em Paris e Londres. O que lhe faz estranhar o fato de a Revolução Científica ter começado nas cidades europeias e não no mundo árabe.
Falta, para estes autores, não o conhecimento, mas talvez a honestidade intelectual de apontar que a visão cristã medieval foi um diferencial. A própria visão religiosa islâmica dificultou o desenvolvimento da ciência ainda no século XIII, período em que o ocidente, através do surgimento das universidades, começou a dominar o desenvolvimento científico.
No capitulo 6, “A aliança moderna”, Harari tece críticas pertinentes ao crescimento desenfreado, o que é surpreendente quando se trata de um autor que tanto preza o desenvolvimento científico e tecnológico. Achei uma crítica bastante equilibrada, que pode ser observada quando ele afirma que “a crítica ao capitalismo, porém, não deveria nos impedir de ver suas vantagens e realizações.”
No capítulo 7 “A revolução humanista”, Harari diz que nossa sociedade trocou a fé em Deus pela fé na humanidade. Para ele, o verdadeiro progresso é abandonar a ideia de um deus. É o que acontece com as duas das principais ramificações do humanismo no século XX que o autor identifica: o humanismo socialista e comunista e o humanismo evolucionário, defendido principalmente pelos nazistas.
         O capítulo 8, “A bomba-relógio no laboratório” continua a dar ênfase em uma visão ontológica extremamente reducionista de ser humano:
o decorrer do século passado, quando os cientistas abriram a caixa-preta do Sapiens, não acharam lá nem alma, nem livre-arbítrio, nem um “eu” — somente genes, hormônios e neurônios, que obedecem às mesmas leis físicas e químicas que governam o resto da realidade. Hoje, quando estudiosos perguntam por que um homem puxa uma faca e apunhala mortalmente alguém, responder “Porque ele fez essa escolha” não vai dar conta do recado. Em vez disso, geneticistas e neurocientistas darão uma resposta muito mais detalhada: “Ele fez isso devido a tais e tais processos eletroquímicos no cérebro, que foram configurados por uma formação genética específica, que é o reflexo de antigas pressões evolutivas aliadas a mutações casuais.
    Tudo é material, naturalístico e determinístico, inclusive escolhas cotidianas. Mas esse reducionismo fica ainda mais evidente na explicação puramente cientificista da arte (cap. 9):
Segundo as ciências biológicas, arte é o produto não de algum espírito encantado ou de uma alma metafísica, e sim de algoritmos orgânicos que reconhecem padrões matemáticos. Logo, nada impede que algoritmos não orgânicos dominem esse reconhecimento de padrões.
Finalizando Homo Deus, em seus dois últimos capítulos Harari caminha por um território peculiar, se exprimindo como alguém profundamente religioso. No capítulo 10, ele aponta que do ponto de vista religioso o lugar mais interessante atualmente é o Vale do Silício, de
onde os gurus da alta tecnologia estão fermentando para nós novas religiões admiráveis que pouco têm a ver com Deus, e tudo a ver com tecnologia. Eles prometem os prêmios clássicos — felicidade, paz, prosperidade e até vida eterna —, mas aqui mesmo na Terra, com a ajuda da tecnologia, e não depois da morte, com a ajuda de seres celestiais.

         O livro encerra-se com capítulo 11, não sem ironia chamado “A religião dos dados”. David F. Noble em Religion of technology explora exatamente essa secularização de temas religiosos, com fortes resquícios de esperanças cristãs na elaboração de projetos científicos e religiosos.  
         Por fim, um livro que apresenta ideias interessantes, mas que também se torna incoerente em algumas partes na medida em que o autor critica uma religião em favor de outra: um cientificismo e uma tecnorreligião (termo do próprio autor). Apesar de em alguns momentos apresentar uma crítica equilibrada aos problemas de crescimento econômico, cientifico e tecnológico, ele ao mesmo tempo coloca esses elementos como os únicos passiveis de dar respostas aos problemas humanos. Uma leitura que deve ser feita de maneira crítica, na companhia de outros bons autores.

        

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