Queria apontar aqui alguns argumentos de um texto que gostei
muito que está em um livro que todos deveriam ler. O texto se intitula “Afinal,
quem é o espiritual?” de Antonio Carlos Barro e é um ótimo texto para pensarmos
sobre espiritualidade e missão.
Inicialmente, o autor procura definir o que é
espiritualidade. Tarefa complicadíssima, mas que deve-se ao menos tentar
responder. No meio evangélico, geralmente se concebe espiritualidade como algo
exterior, e não como uma mudança no mundo interior da pessoa. Neste contexto, uma pessoa é avaliada e considerada
“espiritual” ou não pelas demonstrações externas. Se alguém em uma reunião de
oração, responde com “amém” ou “glória a Deus”, esta pessoa tem mais chance de ser
chamada “espiritual” do que outra que fique calada. Uma igreja com louvor
contemporâneo, com músicas da chamada “adoração profética”, é possivelmente uma
igreja espiritual em relação a outra em que a liturgia é mais conservadora.
Essa visão popular da espiritualidade além de não ajudar só
aumenta a distância entre as muitas denominações ou grupos evangélicos.
Há mais. No movimento evangélico, espiritualidade quase
sempre é associada a termos e expressões como “meditação”, “devocional”, “hora
silenciosa”, “a sós com Deus” e assim por diante. Este tipo de terminologia dá
a entender que a espiritualidade é meramente uma disciplina interior, e que tem
relação apenas com a comunhão pessoal entre o cristão e Deus. Esses parâmetros
são também usados para determinar que grau de cristianismo uma pessoa já
alcançou (normalmente – e equivocadamente -, quem tem o hábito da devocional
diária é visto como cristão de primeira
linha, enquanto outros não tão regulares na leitura da Bíblia são
percebidos como de segunda categoria).
De acordo com o padre católico Segundo Galilea, a
espiritualidade possui três aspectos fortemente interligados: relaciona-se com
a fé, ou melhor, com a experiência da fé; com Jesus Cristo e com a fidelidade
ao Evangelho de Jesus Cristo em determinada situação histórica. Esses três
aspectos são fundamentais para a realização da missão integral da Igreja.
Seria então momento de definir o que seria Missão Integral.
“Missão” está relacionada com o propósito geral de Deus na
criação do mundo e na formação de um povo para si mesmo. Este povo tem como
alvo glorificar a Deus e tornar visíveis seu nome e sua glória em toda a Terra.
A missão, portanto, é a missio Dei, ou seja, a missão de Deus. O princípio e o fim
da missão são o próprio Deus.
Por “missões”, entende-se a atividade que a Igreja ou o povo
de Deus realiza dentro do escopo da missio
Deis. Para ilustrar, pensemos em situações concretas: a impressão de
Bíblias, o treinamento missionário, o sustento de missionários, o envio de
novos evangelistas, tudo isso faz parte de missões. A missão é conceitual,
enquanto missões pressupõe ação. Quem não tem um bom conceito ou entendimento
do que é a missão da Igreja promoverá missões de modo desordenado.
Com relação à missão integral, muitos missiólogos do Brasil e
da América Latina preferem usa a palavra “integral”, em vez de “holística”,
mais utilizada em países de língua inglesa. No entanto, ambos traduzem a
característica da missão da Igreja.
Missão Integral
É difícil demarcar com segurança como e quando a expressão “missão
integral” foi cunhada. Certamente não nasceu na América Latina, mas como
variação de outra já foi mencionada: a missio
Dei, usada pela primeira vez por Karl Hartenstein em 1934, e que depois
veio a ser utilizada na Conferência Missionária de Willingen, em 1952. A expressão
foi popularizada por Georg Vicedom no livro Missão
como obra de Deus, publicado originalmente em 1965, e significa que a
missão é, primariamente, obra de Deus. Ela
contém a ideia de que a tarefa da Igreja não deve ser resumida apenas em seu
papel evangelístico no mundo, mas deve também incluir a participação direta na
transformação da sociedade.
A missio Dei surgiu
no mesmo contexto da teologia política, delineada pelos teólogos germânicos Karl
Rahner e Johamm B. Metz, e que influenciou, na América Latina, o surgimento da
teologia da libertação. Segundo Metz, a teologia política pode ser vista a
partir de dois aspectos. Primeiramente, ela corrige a tendência de confinar a
teologia à arena privada, que reduz o coração da mensagem cristã e o exercício
pratica da fé a uma decisão meramente individual, afastada do mundo. Em segundo
lugar, é o esforço para formular uma mensagem escatológica do cristianismo no
contexto da sociedade de hoje, levando em consideração as mudanças nas
estruturas na vida pública. Em outras palavras, é um esforço para vencer a
passividade hermenêutica do cristianismo no mundo de hoje.
A primeira vez em que se procurou olhar o tema da missão
integral com mais cuidado, influenciando toda uma geração de pastores de
líderes, inclusive no Brasil, foi no Congresso de Lausanne, realizado na Suíça,
em 1974. Sob a forte liderança do conhecido teólogo John Stott, tentou-se dar
destaque à justiça social como parte integrante da missão, ao lado do evangelismo.
Mesmo assim, quando se lê o famoso Pacto de Lausanne (pode ser lido, em
português, aqui: http://www.lausanne.org/pt/pt/1662-covenant.html),
percebe-se que o evangelismo ainda ocupou lugar de destaque em relação à obra
social da Igreja. Apesar disso, Lausanne é considerado um marco por ter fornecido mais abertura aos que
buscavam espaço para a ação social.
Quem melhor definiu o ministério
integral talvez tenha sido Bryant Myers, que entende ele como aquele em que “a
compaixão, a transformação social e a proclamação estão inseparavelmente
relacionadas”.
Aspectos da espiritualidade da
missão integral
Um texto chave para o tema pode
ser João 20:21: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz esteja convosco! Assim como
o Pai me enviou, também eu vos envio a vós” (ARC).
Antonio Carlos Barro analisa este
texto e diz que precisamos prestar mais atenção ao advérbio “assim”. Do grego kathos, significa “da mesma maneira”, “na
mesma proporção” ou “no mesmo grau”. Vemos aqui o elemento da missio Dei fortemente exposto. A missão
de Cristo começou no céu (Fp 2.5-11) e desembocou na Terra (Jo 1). Em outras
palavras, ela não se tratou de missão desautorizada, nem descontextualizada.
Quando lemos o texto clássico da
Grande Comissão (Mt 28:18-20), encontramos esses dois elementos presentes.
Jesus afirma que possui toda a autoridade (exousia).
Esse apresenta significado amplo. A pessoa com exousia tem poder de escolha, pode fazer o que lhe agrada. Esse poder
é tanto físico quanto mental – usufruir poder para decidir ou governar. Isso significa
que todos os comandados precisam se submeter e obedecer a essa pessoa.
Esse poder também é universal,
isto é, está sobre toda a humanidade, simbolizando a realeza de quem o detém. Portanto,
Cristo, ao morrer e ressuscitar, conquistou o direito de ter todo o poder para
ordenar e dirigir sua Igreja. Assim como o Pai lhe deu autoridade para vir ao
mundo, ele concede autoridade à Igreja para estar no mundo em missão.
O segundo aspecto da missão de
Cristo é o local dela. Jesus disse que o Pai o enviou. No evangelho de João,
aprendemos que Deus o enviou ao mundo, ou seja, um lugar concreto. Na Grande
Comissão, é Cristo quem envia sua Igreja ao mundo para fazer novos seguidores
do Reino. O mundo é a arena onde a missão se desenvolve, toma forma. O mundo,
com todas as coisas boas e ruins, é o palco onde a batalha pela vida do ser
humano é travada. Assim, quando se aproximava o retorno ao Pai, Cristo
comissiona sua Igreja a representá-lo no mundo.
Pensando na missão da Igreja e na
missão de Cristo, chegamos a duas conclusões: é a mesma missão, e portanto não
pode diferenciar-se da realizada por Cristo. Ele é o modelo para agirmos, o
referencial absoluto de prática para tudo o que somos e fazemos.
Aspectos da
espiritualidade de Cristo
Antonio Carlos Barro ressalta alguns pontos da
espiritualidade de Cristo:
1.
O
ponto de partida da missão de Cristo é sua completa obediência aos propósitos
de Deus. Por várias vezes ele declara que veio ao mundo para fazer a vontade do
Pai (Mt6:10; Lc 22:42; Jo4:34; 5:30; 6:38-40). Este é o elemento basilar em
qualquer cadeia de autoridade. O que envia tem o poder de determinar, e o
enviado tem o dever de obedecer.
2.
Outro
elemento da espiritualidade de Cristo é que ela é pneumatológica. O profeta
havia anunciado (IS 61:1-3) que o Messias seria ungido pelo Espírito Santo. Durante
todo seu ministério, Jesus esteve sob a orientação do Espírito Santo, e no fim
ele indica que o Espírito Santo permanecerá ao lado da Igreja, orientando-a e
fortalecendo-a no desenvolvimento de sua atividade missionária.
3.
Outro
aspecto da espiritualidade de Cristo é a solidariedade. Tendo encarnado no
mundo, Cristo olha para ele com amor, e é solidário à dor de seus habitantes. Seu
ministério era sensível às necessidades das pessoas, principalmente daquelas
que mais sofriam, como as viúvas, os pobres, os marginalizados por causa de
alguma enfermidade ou os injustiçados nas mãos dos religiosos da época. Por onde
passava, as pessoas afluíam em busca de algum tipo de consolo, e o interessante
é que Jesus jamais se cansou delas. As pessoas nunca o incomodavam, pois ele as
via como gente sem direção, sem um pastor. Sua solidariedade era constante e
impressionava pela bondade demonstrada.
Assim, a mensagem de Cristo é o fundamento da nossa
espiritualidade.
O texto áureo da espiritualidade cristã está no sermão do
Monte (Mt 5-7_. A partir dele podemos delinear alguns fundamentos que norteiam
nossa missão integral nessa jornada rumo à consumação dos tempos.
. a espiritualidade deve transcender as circunstâncias desse
mundo. No início do sermão do Monte, Cristo nos recorda que as circunstâncias deste
mundo, por mais avassaladoras que possam ser ou parecer, não se esgotam em si.
Nada deve tirar nossa alegria de pertencer ao Reino de Deus. A espiritualidade
da missão integral não é alienada e nem alienante. Enquanto olha para este mundo,
prega uma mensagem não apenas humanista, mas que transcende este universo e
aponta para um realidade maior: o Reino de Deus.
. A espiritualidade deve modificar as circunstâncias deste
mundo. O desenvolvimento da missão da Igreja não limita-se às paredes do
templo. Ali, na atmosfera segura que a comunhão dos santos proporciona,
aprendemos de Deus; porém, a missão se realiza no meio do caos em que o mundo
está instalado. Os seguidores de Cristo precisam estar no mundo, assim como ele
esteve. É necessário encher-se de coragem e ousadia e modificar o ambiente,
acendendo a luz que ilumina as trevas e trazendo sabor para os lugares onde o
pecado tem apodrecido tantas vidas. O Pai se agrada quando os discípulos de
Jesus fazem o que ele fez, ou seja, andam pelo mundo promovendo glória de Deus.
A luz ilumina o mundo, e o sal salga a massa. É uma espiritualidade que se
manifesta nos caminhos do mundo e não se esconde sob o velador.
. A espiritualidade deve valorizar a vida do próximo. O materialismo
transformou a vida humana em objeto. No Reino de Deus, o ser humano continua
sendo a imagem e a semelhança do Criador. Não se pode pensar na vida menos que
isso. Na sociedade atual, o ser humano não vale muito, e aqueles que não
possuem o status que o mundo oferece
são os que mais sofrem as injustiças. A vida é decepada, os lares são
destruídos e quase não se tem mais espaço para a prática do amor. A missão
integral resgata as pessoas de suas futilidades e maneiras vãs de viver. Proclama
profeticamente contra todos que procuram escravizar as pessoas em seus esquemas
satânicos e também contra as estruturas que promovem morte e desestruturação. A
espiritualidade da missão integral proclama a dignidade do ser humano.
. a espiritualidade deve alterar meu modo de agir e pensar. Em
Mt 6 Jesus aponta que a oração e o jejum têm como objetivo desnudar-nos diante
de Deus e revelar-lhe os segredos da alma, restabelecendo as prioridades do
ministério e impedindo que os cuidados deste mundo tornem a missão tão mecânica
a ponto de eventualmente perder o rumo. A espiritualidade da missão integral é também
vertical. Não podemos pensar que a prática das disciplinas que purificam a alma
seja alienante, e por isso deva ser evitada e substituída por atividades sem
fim. A verticalidade da missão é tão importante quanto a horizontalidade.
Qual é “A” missão: revelar Cristo ao mundo.
A espiritualidade não pode ser apenas algo abstrato, nem algo
para ser experimentado na vida particular ou privada. É certo que a experiência
pessoal, e a comunhão no secreto do quarto também fazem parte da verdadeira
vida espiritual. Entretanto, os frutos e os benefícios de uma vida em comunhão
com Deus devem ser manifestados.
A missão da Igreja é uma só: revelar Cristo ao mundo como
mediador de Deus. Em sua missão, a Igreja tanto proclama quanto serve; tanto
adora quanto ensina. A missão é integral por causa disso:ela é um todo,
indivisível. Assim foi Cristo, assim somos nós.
Na história do cristianismo, a Igreja ganhou mais
credibilidade quando estava na periferia, fora das esferas do poder, pregando
contra os desmandos e abusos dos poderosos e opressores.
A mensagem de Cristo é ousada e transformadora. Quem crê
também muda: seus valores, seus princípios e sua ética serão todos determinados
pelos sinais do Reino de Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário