segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O que é espiritualidade



Queria apontar aqui alguns argumentos de um texto que gostei muito que está em um livro que todos deveriam ler. O texto se intitula “Afinal, quem é o espiritual?” de Antonio Carlos Barro e é um ótimo texto para pensarmos sobre espiritualidade e missão.

Inicialmente, o autor procura definir o que é espiritualidade. Tarefa complicadíssima, mas que deve-se ao menos tentar responder. No meio evangélico, geralmente se concebe espiritualidade como algo exterior, e não como uma mudança no mundo interior da pessoa. Neste contexto,  uma pessoa é avaliada e considerada “espiritual” ou não pelas demonstrações externas. Se alguém em uma reunião de oração, responde com “amém” ou “glória a Deus”, esta pessoa tem mais chance de ser chamada “espiritual” do que outra que fique calada. Uma igreja com louvor contemporâneo, com músicas da chamada “adoração profética”, é possivelmente uma igreja espiritual em relação a outra em que a liturgia é mais conservadora.

Essa visão popular da espiritualidade além de não ajudar só aumenta a distância entre as muitas denominações ou grupos evangélicos.

Há mais. No movimento evangélico, espiritualidade quase sempre é associada a termos e expressões como “meditação”, “devocional”, “hora silenciosa”, “a sós com Deus” e assim por diante. Este tipo de terminologia dá a entender que a espiritualidade é meramente uma disciplina interior, e que tem relação apenas com a comunhão pessoal entre o cristão e Deus. Esses parâmetros são também usados para determinar que grau de cristianismo uma pessoa já alcançou (normalmente – e equivocadamente -, quem tem o hábito da devocional diária é visto como cristão de primeira linha, enquanto outros não tão regulares na leitura da Bíblia são percebidos como de segunda categoria).

De acordo com o padre católico Segundo Galilea, a espiritualidade possui três aspectos fortemente interligados: relaciona-se com a fé, ou melhor, com a experiência da fé; com Jesus Cristo e com a fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo em determinada situação histórica. Esses três aspectos são fundamentais para a realização da missão integral da Igreja.

Seria então momento de definir o que seria Missão Integral.

“Missão” está relacionada com o propósito geral de Deus na criação do mundo e na formação de um povo para si mesmo. Este povo tem como alvo glorificar a Deus e tornar visíveis seu nome e sua glória em toda a Terra. A missão, portanto, é a missio Dei,  ou seja, a missão de Deus. O princípio e o fim da missão são o próprio Deus.

Por “missões”, entende-se a atividade que a Igreja ou o povo de Deus realiza dentro do escopo da missio Deis. Para ilustrar, pensemos em situações concretas: a impressão de Bíblias, o treinamento missionário, o sustento de missionários, o envio de novos evangelistas, tudo isso faz parte de missões. A missão é conceitual, enquanto missões pressupõe ação. Quem não tem um bom conceito ou entendimento do que é a missão da Igreja promoverá missões de modo desordenado.

Com relação à missão integral, muitos missiólogos do Brasil e da América Latina preferem usa a palavra “integral”, em vez de “holística”, mais utilizada em países de língua inglesa. No entanto, ambos traduzem a característica da missão da Igreja.

Missão Integral

É difícil demarcar com segurança como e quando a expressão “missão integral” foi cunhada. Certamente não nasceu na América Latina, mas como variação de outra já foi mencionada: a missio Dei, usada pela primeira vez por Karl Hartenstein em 1934, e que depois veio a ser utilizada na Conferência Missionária de Willingen, em 1952. A expressão foi popularizada por Georg Vicedom no livro Missão como obra de Deus, publicado originalmente em 1965, e significa que a missão é, primariamente, obra de Deus. Ela contém a ideia de que a tarefa da Igreja não deve ser resumida apenas em seu papel evangelístico no mundo, mas deve também incluir a participação direta na transformação da sociedade.

A missio Dei surgiu no mesmo contexto da teologia política, delineada pelos teólogos germânicos Karl Rahner e Johamm B. Metz, e que influenciou, na América Latina, o surgimento da teologia da libertação. Segundo Metz, a teologia política pode ser vista a partir de dois aspectos. Primeiramente, ela corrige a tendência de confinar a teologia à arena privada, que reduz o coração da mensagem cristã e o exercício pratica da fé a uma decisão meramente individual, afastada do mundo. Em segundo lugar, é o esforço para formular uma mensagem escatológica do cristianismo no contexto da sociedade de hoje, levando em consideração as mudanças nas estruturas na vida pública. Em outras palavras, é um esforço para vencer a passividade hermenêutica do cristianismo no mundo de hoje.

A primeira vez em que se procurou olhar o tema da missão integral com mais cuidado, influenciando toda uma geração de pastores de líderes, inclusive no Brasil, foi no Congresso de Lausanne, realizado na Suíça, em 1974. Sob a forte liderança do conhecido teólogo John Stott, tentou-se dar destaque à justiça social como parte integrante da missão, ao lado do evangelismo. Mesmo assim, quando se lê o famoso Pacto de Lausanne (pode ser lido, em português, aqui: http://www.lausanne.org/pt/pt/1662-covenant.html), percebe-se que o evangelismo ainda ocupou lugar de destaque em relação à obra social da Igreja. Apesar disso, Lausanne é considerado um  marco por ter fornecido mais abertura aos que buscavam espaço para a ação social.

Quem melhor definiu o ministério integral talvez tenha sido Bryant Myers, que entende ele como aquele em que “a compaixão, a transformação social e a proclamação estão inseparavelmente relacionadas”.

 

Aspectos da espiritualidade da missão integral

 

Um texto chave para o tema pode ser João 20:21: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós” (ARC).

Antonio Carlos Barro analisa este texto e diz que precisamos prestar mais atenção ao advérbio “assim”. Do grego kathos, significa “da mesma maneira”, “na mesma proporção” ou “no mesmo grau”. Vemos aqui o elemento da missio Dei fortemente exposto. A missão de Cristo começou no céu (Fp 2.5-11) e desembocou na Terra (Jo 1). Em outras palavras, ela não se tratou de missão desautorizada, nem descontextualizada.

Quando lemos o texto clássico da Grande Comissão (Mt 28:18-20), encontramos esses dois elementos presentes. Jesus afirma que possui toda a autoridade (exousia). Esse apresenta significado amplo. A pessoa com exousia tem poder de escolha, pode fazer o que lhe agrada. Esse poder é tanto físico quanto mental – usufruir poder para decidir ou governar. Isso significa que todos os comandados precisam se submeter e obedecer a essa pessoa.

Esse poder também é universal, isto é, está sobre toda a humanidade, simbolizando a realeza de quem o detém. Portanto, Cristo, ao morrer e ressuscitar, conquistou o direito de ter todo o poder para ordenar e dirigir sua Igreja. Assim como o Pai lhe deu autoridade para vir ao mundo, ele concede autoridade à Igreja para estar no mundo em missão.

O segundo aspecto da missão de Cristo é o local dela. Jesus disse que o Pai o enviou. No evangelho de João, aprendemos que Deus o enviou ao mundo, ou seja, um lugar concreto. Na Grande Comissão, é Cristo quem envia sua Igreja ao mundo para fazer novos seguidores do Reino. O mundo é a arena onde a missão se desenvolve, toma forma. O mundo, com todas as coisas boas e ruins, é o palco onde a batalha pela vida do ser humano é travada. Assim, quando se aproximava o retorno ao Pai, Cristo comissiona sua Igreja a representá-lo no mundo.

Pensando na missão da Igreja e na missão de Cristo, chegamos a duas conclusões: é a mesma missão, e portanto não pode diferenciar-se da realizada por Cristo. Ele é o modelo para agirmos, o referencial absoluto de prática para tudo o que somos e fazemos.

 

Aspectos da espiritualidade de Cristo

Antonio Carlos Barro ressalta alguns pontos da espiritualidade de Cristo:

1.      O ponto de partida da missão de Cristo é sua completa obediência aos propósitos de Deus. Por várias vezes ele declara que veio ao mundo para fazer a vontade do Pai (Mt6:10; Lc 22:42; Jo4:34; 5:30; 6:38-40). Este é o elemento basilar em qualquer cadeia de autoridade. O que envia tem o poder de determinar, e o enviado tem o dever de obedecer.

2.      Outro elemento da espiritualidade de Cristo é que ela é pneumatológica. O profeta havia anunciado (IS 61:1-3) que o Messias seria ungido pelo Espírito Santo. Durante todo seu ministério, Jesus esteve sob a orientação do Espírito Santo, e no fim ele indica que o Espírito Santo permanecerá ao lado da Igreja, orientando-a e fortalecendo-a no desenvolvimento de sua atividade missionária.

3.      Outro aspecto da espiritualidade de Cristo é a solidariedade. Tendo encarnado no mundo, Cristo olha para ele com amor, e é solidário à dor de seus habitantes. Seu ministério era sensível às necessidades das pessoas, principalmente daquelas que mais sofriam, como as viúvas, os pobres, os marginalizados por causa de alguma enfermidade ou os injustiçados nas mãos dos religiosos da época. Por onde passava, as pessoas afluíam em busca de algum tipo de consolo, e o interessante é que Jesus jamais se cansou delas. As pessoas nunca o incomodavam, pois ele as via como gente sem direção, sem um pastor. Sua solidariedade era constante e impressionava pela bondade demonstrada.

Assim, a mensagem de Cristo é o fundamento da nossa espiritualidade.

O texto áureo da espiritualidade cristã está no sermão do Monte (Mt 5-7_. A partir dele podemos delinear alguns fundamentos que norteiam nossa missão integral nessa jornada rumo à consumação dos tempos.

. a espiritualidade deve transcender as circunstâncias desse mundo. No início do sermão do Monte, Cristo nos recorda que as circunstâncias deste mundo, por mais avassaladoras que possam ser ou parecer, não se esgotam em si. Nada deve tirar nossa alegria de pertencer ao Reino de Deus. A espiritualidade da missão integral não é alienada e nem alienante. Enquanto olha para este mundo, prega uma mensagem não apenas humanista, mas que transcende este universo e aponta para um realidade maior: o Reino de Deus.

. A espiritualidade deve modificar as circunstâncias deste mundo. O desenvolvimento da missão da Igreja não limita-se às paredes do templo. Ali, na atmosfera segura que a comunhão dos santos proporciona, aprendemos de Deus; porém, a missão se realiza no meio do caos em que o mundo está instalado. Os seguidores de Cristo precisam estar no mundo, assim como ele esteve. É necessário encher-se de coragem e ousadia e modificar o ambiente, acendendo a luz que ilumina as trevas e trazendo sabor para os lugares onde o pecado tem apodrecido tantas vidas. O Pai se agrada quando os discípulos de Jesus fazem o que ele fez, ou seja, andam pelo mundo promovendo glória de Deus. A luz ilumina o mundo, e o sal salga a massa. É uma espiritualidade que se manifesta nos caminhos do mundo e não se esconde sob o velador.

. A espiritualidade deve valorizar a vida do próximo. O materialismo transformou a vida humana em objeto. No Reino de Deus, o ser humano continua sendo a imagem e a semelhança do Criador. Não se pode pensar na vida menos que isso. Na sociedade atual, o ser humano não vale muito, e aqueles que não possuem o status que o mundo oferece são os que mais sofrem as injustiças. A vida é decepada, os lares são destruídos e quase não se tem mais espaço para a prática do amor. A missão integral resgata as pessoas de suas futilidades e maneiras vãs de viver. Proclama profeticamente contra todos que procuram escravizar as pessoas em seus esquemas satânicos e também contra as estruturas que promovem morte e desestruturação. A espiritualidade da missão integral proclama a dignidade do ser humano.

. a espiritualidade deve alterar meu modo de agir e pensar. Em Mt 6 Jesus aponta que a oração e o jejum têm como objetivo desnudar-nos diante de Deus e revelar-lhe os segredos da alma, restabelecendo as prioridades do ministério e impedindo que os cuidados deste mundo tornem a missão tão mecânica a ponto de eventualmente perder o rumo. A espiritualidade da missão integral é também vertical. Não podemos pensar que a prática das disciplinas que purificam a alma seja alienante, e por isso deva ser evitada e substituída por atividades sem fim. A verticalidade da missão é tão importante quanto a horizontalidade.

 

Qual é “A” missão: revelar Cristo ao mundo.

A espiritualidade não pode ser apenas algo abstrato, nem algo para ser experimentado na vida particular ou privada. É certo que a experiência pessoal, e a comunhão no secreto do quarto também fazem parte da verdadeira vida espiritual. Entretanto, os frutos e os benefícios de uma vida em comunhão com Deus devem ser manifestados.

A missão da Igreja é uma só: revelar Cristo ao mundo como mediador de Deus. Em sua missão, a Igreja tanto proclama quanto serve; tanto adora quanto ensina. A missão é integral por causa disso:ela é um todo, indivisível. Assim foi Cristo, assim somos nós.

Na história do cristianismo, a Igreja ganhou mais credibilidade quando estava na periferia, fora das esferas do poder, pregando contra os desmandos e abusos dos poderosos e opressores.

A mensagem de Cristo é ousada e transformadora. Quem crê também muda: seus valores, seus princípios e sua ética serão todos determinados pelos sinais do Reino de Deus.

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