Em vista das centenas de
resenhas que a trilogia “Jogos Vorazes” (filmes e livros) recebeu na internet, devo dizer já de
início que não focarei minha análise na narrativa dos livros, mas sim no que a
história pode nos ajudar a pensar sobre nossa própria sociedade.
O
argumento dos três volumes de Jogos Vorazes gira em torno de uma sociedade no
futuro, após um desastre no território do que se conhecia como Estados Unidos.
A nova sociedade que emerge chama-se Panem, composta por 13 distritos mais a
capital, sem deixar de fazer referência às Trezes Colônias originais que
formaram a região colonizada no século XVI pelos ingleses.
Entretanto,
neste novo país, a liberdade é extremamente cerceada e o governo é totalitário.
Para manter em rédeas curtas a população e evitar novas rebeliões, organizam-se
jogos anuais sanguinários nos quais jovens competem até a morte, uma espécie de
survival show extremo no qual somente um pode ser o vencedor. O objetivo é
mostrar a futilidade de se empreender um ato rebelde, pois o poder da Capital é
incontestável. Falando em futilidade, os Jogos são amplamente filmados e os
habitantes das diversas províncias são obrigados a assistir como desígnio
didático.
O
próprio nome desse país futurista nos dá a dica do tipo de entretenimento que é
cultivado: Panem, vem da frase panem et
circenses, que significa “pão e circo”. Na Roma antiga, espetáculos
sangrentos envolvendo gladiadores aconteciam em anfiteatros com ampla anuência
popular, pela diversão e pelo alimento que recebiam. Panem, ao invés de
providenciar divertimento e comida para seus habitantes, fornecia uma imagem de
que as coisas deviam permanecer como eram, pois do contrário, haveria
sofrimento e morte.
Suzanne Collins procurou conceber
uma linguagem do livro focada no público jovem, e não investe muito em
descrições pormenorizadas do ambiente, dos personagens e seus sentimentos. Por
exemplo, nas vezes em que a heroína da série, Katniss, faz uso de seu arco, a
narrativa é decepcionante. Se você quer ver uma descrição detalhada de um arco
sendo atirado, com os detalhes físicos e mentais do personagem que o empunha,
vá para Bernard Cornwell e sua série “A busca do Graal”. A autora em suas obras
focou muito mais em detalhes de roupas, cabelos, festas e jantares, talvez
fazendo uma paródia da própria futilidade exibida nos programas de televisão
atuais.
Para além disso, o livro diverte
e vale muito como uma crítica à natureza extremamente hedonista da sociedade
atual. Podemos definir, não sei se tal termo já existe, que vivemos numa época
de hedonismo virtual. Nossos anseios
nos são transmitidos através da TV à cabo ou da internet.
Considerações de Neil Postman
Neil Postam, um importante
teórico dos meios de comunicação e crítico cultural, publicou em 1985 “Amusingourselves to death” (algo como, Nos divertindo até a morte). Este livro serve-me
como base para apontar algumas ressonâncias na trilogia “Jogos Vorazes”.
Segundo
Postam,
“Aldous Huxley nos ensina que na
idade de tecnologia avançada, a devastação espiritual vem mais facilmente de um
inimigo com uma face sorridente do que cujo semblante exala suspeita e ódio. Na
profecia Huxleiana, o Big Brother não nos assiste, por sua escolha. Nós assistimos
a ele, por nossa escolha (...). Quando uma população se torna distraída por trivias, quando a vida cultural é
redefinida por uma perpétua rodada de entretenimentos, quando conversações
públicas sérias se tornam uma forma de fala de bebês, quando, enfim, uma pessoa
se torna uma audiência e seus negócios públicos se tornam um ato teatral, então
uma nação se encontra em risco; a morte-cultural é uma clara possibilidade.”
(Postam, 2005, p. 155).
Para Postman nada é tão culturalmente revolucionário quanto a transmissão televisiva.
Sem votos, sem polêmicas, sem resistências. Aqui está uma ideologia sem
palavras, e por isso mesmo ainda mais poderosa. Tudo o que é necessário para se
fixar é uma população que acredita na inevitabilidade do progresso. Parece que
acreditamos que a história está nos movendo para um paraíso preordenado e que a
tecnologia é a força por de trás deste movimento.
A
mensagem sutil que “Jogos Vorazes” parece querer passar é a de que devemos nos
tornar cientes dos usos e abusos dos entretenimentos. A chave para isso é, de
acordo com Postman, a aquisição de uma profunda e inabalável consciência da estrutura
e efeitos da informação, através de uma desmistificação dos meios de
comunicação. Agindo assim obteremos alguma medida de controle sobre a
televisão, ou computador, ou qualquer outra mídia.
Postman
aponta dois métodos para buscar adquirir essa consciência. Um método, absurdo
segundo ele, seria criar programas de televisão cuja intenção seja não fazer as
pessoas pararem de assistir televisão, mas demonstrar como a televisão deveria
ser vista, mostrar como a televisão recreia e degrada nossa concepção das
notícias, debates políticos, pensamento religioso etc. Esse parece ter sido o
método de Suzanne Collins.
Outro método seria confiar no
único meio de comunicação de massa que, em teoria, é capaz de abordar o tema:
nossas escolas.
Os educadores
não estão conscientes dos efeitos da televisão em seus estudantes. Os
educadores têm se questionado em como podem usar a televisão, ou o computador,
para controlar a educação. Ao invés, eles deveriam estar se perguntando em como
nós podemos usar a educação para controlar a televisão ou o computador.
Postman,
por fim, concorda com Aldous Huxley, no sentido de que nós estamos em uma
corrida entre a educação e o desastre. Por isso Huxley escreveu massiçamente sobre
a necessidade de entendimento das políticas e da epistemologia dos meios de
comunicação. No fim, o que Huxley estava nos tentando dizer que afetava as
pessoas em Admirável Mundo Novo, não era que eles estavam rindo ao invés de
pensar, mas que eles não sabiam sobre o que eles estavam rindo e porque eles pararam
de pensar.
O gênero literário de “Jogos
Vorazes”, uma distopia, enfoca um futuro pessimista, e pode ser traçado como se
originando em Aldous Huxley, que em 1932 publicou seu “Admirável Mundo Novo”.
Entretanto, as novas obras distópicas são destinadas a jovens, tais como
“Divergente” e “Mortal Engines” e tem a característica de serem menos profundas
em suas críticas.
Podemos nos perguntar por que nas
últimas décadas abundam obras distópicas? E por que elas têm um público cativo
entre os adolescentes e jovens? A desesperança para com o futuro é a marca
dessa geração?
Por mais irônico que seja, “Jogos
Vorazes” é uma peça de crítica à cultura de entretenimento, ao mesmo tempo em
que proporciona grandes lucros através desse entretenimento. Enfim, feito sob medida
para os jovens devotados às mídias sociais, cujas discussões não passam da
profundidade de um twitte. Devemos voltar com afinco a Aldous Huxley, o grande
profeta desse novo contexto permeado pela tecnologia da televisão, do computador,
das mídias sociais, e levar a sério suas críticas mais vorazes. O que realmente
está em jogo são as nossas mentes e nossa visão de mundo.
Artigos de interesse:
Em 1992, Roger Waters,
ex-baixista do Pink Floyd lançou o álbum conceitual “Amused to death”,
inspirado pela obra de Neil Postman.
Parabéns pelo texto, Luiz! Sua leitura concisa e atenta de "Jogos Vorazes" me vez ver essa série com outros olhos. Não havia atentado para a possível profundidade da narrativa, pois, ainda que a crítica social seja evidente, a futilidade que você mencionou a recobre como um verniz. Mas a crítica está lá, abaixo da aparente simplicidade. Vou olhar a série com mais atenção agora.
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