Importante pra clarificar o mito do conflito entre ciência e religião é a descrição de como nós hoje compreendemos o mundo em termos de categorias distintas "ciência" e "religião", ou como nós
separamos o domínio de fatos materiais da esfera de valores morais e religiosos. É nesse trabalho que se debruça Peter Harrison, historiador, atualmente no posto de professor de filosofia e religião na Universidade de Oxford. O livro, publicado em 2015, "Territories of science and religion" é fruto de uma revisão das Gifford Lectures que ele deu na Universidade de Edinburgh em Fevereiro de 2011. Bom saber que essas "lectures" ocorrem desde 1888 e contaram com nomes como Steven Pinker, Roger Scruton, Terry Eagleton, Noam Chomsky e Alvin Plantinga, entre outros. Elas foram estabelecidas com o intuito de promover e difundir o estudo da Teologia Natural.
Peter Harrison traça um histórico de como os campos da religião e da ciência foram se estabelecendo. É uma obra com bastante cuidado com fontes e resgate dos debates históricos em torno dos temas da religião e da ciência, mostrando que os dois sempre estiveram interligados: ninguém, antes do século XIX, pensava em discutir a relevância dos dois. Desde o início do cristianismo, a religião se ligava à um hábito moral, enquanto que a ciência se ligava à um espírito investigativo. Era necessário ter ambos.
Algo que é extremamente interessante é a reconstituição da criação da ideia de "religião" e de "ciência", que, com esses nomes, somente serão propriamente entendidos mais tardiamente do que normalmente se aceita. Explico. O corpo de doutrinas e crenças e teorias que compuseram a religião e a ciência somente foram estabelecidas a partir de meados da Idade Média para a religião, e já nos fins da Idade Moderna, no século XIX, para a ciência.
Após um histórico da constituição desses dois territórios o autor chega, no sexto capítulo, ao tema da invenção do "mito do conflito entre ciência e religião". Tal mito obteve popularidade no século XIX, a partir da obra de Andrew Dickson White, "History of the warfare of religion and science", publicado em 1897. Este livro catalogou e construiu muito dos mitos agora prevalecentes neste tema, tais como a ideia de que o cristianismo medieval foi não hospitaleiro à ciência, de que a igreja baniu a dissecação humana, de que pensadores antigos e medievais acreditavam que a terra era plana, de que Galileu foi torturado e emprisionado pela Inquisição entre outros. (Um livro que trata bem desses mitos é "Galileu goes to jail and others myths about science and religion" editado por Ronald Numbers.)
A defesa de Peter Harrison é que o projeto científico moderno começou não com uma separação entre cristianismo e filosofia natural (que mais tarde viria a se configurar como ciência), mas sim com o forjamento de uma relação íntima entre eles. Claro que há diferenças epistêmicas entre ambos, mas a religião preparou o território para a existência da ciência, na medida em que, durante a Idade Média, se configurou um pensamento de que as crenças em diversas esferas deveriam requerer uma justificação racional. Foi essa "reviravolta epistêmica" que favoreceu o surgimento de uma cultura científica na Europa moderna.
O livro é enriquecedor no debate ciência e religião. Em alguns momentos as digressões históricas são mais focadas para historiadores e teólogos, mas tudo é essencial para a construção do argumento do autor. Importante de ser lido e debatido.
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