quinta-feira, 31 de março de 2016

"Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley.



A história de “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley passa-se em Londres no ano de 2540, ou melhor, em 632 depois de Ford. Nessa sociedade, as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e psicologicamente para viverem de acordo com certas regras e são dispostas em castas. Cada casta cumpre uma função nessa sociedade harmoniosa, desde os trabalhadores braçais até a elite intelectual. As pessoas não mais são geradas por gravidez e sim gerados e alimentados em incubadoras. “O princípio da produção em série [fordista] aplicado enfim à biologia”. As pessoas são condicionadas a odiar os livros e às flores, numa negação do racional e da contemplação do belo. Então, logo nos capítulos iniciais do livro encontramos o primeiro inconformado: Bernard Marx e começamos a perceber a profundidade da obra de Huxley.
Essa é a segunda vez que leio “Admirável Mundo Novo”. Fiquei impressionado com a quantidade de detalhes que consegui perceber nesta nova leitura. A diferença temporal de uns dez anos que separa a primeira da segunda leitura fizeram muita diferença. E aqui deixo um conselho: releiam livros que te surpreenderam à muito tempo atrás. A releitura pode revelar muitos detalhes que nos passaram despercebidos da primeira vez, porque estamos mais maduros e realizamos outras leituras. Claro que alguns livros vão nos trazer decepções quando relidos. Aquele livro que era sensacional quando lidos  na adolescência não é mais tão excepcional. Mas alguns, como “Admirável”, só podem melhorar com a experiência.
Por exemplo, quando li pela primeira vez o que mais me chamou a atenção foi a trajetória dos personagens em si, e prestei pouca atenção às questões sociais, mesmo tendo percebido o tom distópico de crítica social. Agora as questões sociais e cientificas se mostraram muito mais fortes, reforçadas pelas minhas leituras em torno da filosofia da ciência. Mas não é necessário um grande conhecimento científico para aproveitar a narrativa de Huxley, e sua ironia pode ser percebida facilmente.
A começar pelo personagem principal, Bernard Marx. Seu nome, Bernard, faz referência à George Bernard Shaw, um escritor de peças de teatro que estava vivo na época de Huxley. Shaw era um socialista e advogado dos direitos políticos igualitários para as mulheres – isso se encaixa muito bem quando percebemos o nojo de Bernard quando Lenina (outra ironia) é tratada como um objeto sexual. O sobrenome Marx, que dispensa apresentação, se inspira no defensor do comunismo que acreditava que as classes baixas ou trabalhadoras se levantariam e tomariam o lugar das elites. A ironia é que Bernard pertence à casta de elite “Alfa” e por fim vai preferir o luxo superficial da alta sociedade, sem se preocupar com questões sociais.
A personagem Lenina Crowne faz alusão à Lenin, o revolucionário comunista russo que acaba se tornando o líder da União Soviética na década de 1920. Lenina é conformista com a situação à sua volta e acaba sendo uma ferramenta nas mãos do governo totalitário. Isso aponta a ideia do autor de que todo “leninismo” acaba incorrendo em conformismo.
Todos os nomes de personagens que aparecem na história carregam uma ambiguidade e uma ironia fina. Não cabe aqui analisar todas as referências, mas deixo esse link para quem se interessar: http://www.shmoop.com/brave-new-world/characterization.html
(Huxley não deixa nada intocado. No capítulo V, a famosa abadia de Westminster se tornou em um cabaré!)
A crítica à sociedade tecnocientífica é o alvo da argumentação de Huxley, em uma visão determinística. O perigo de confiar em tecnocratas que apontam o caminho que deve ser seguido pela ciência e pela tecnologia necessariamente levaria à um totalitarismo. Mais tarde Jacques Ellul falaria da tecnificação do cotidiano que estava ocorrendo no século XX e isso transparece em “Admirável Mundo Novo”. Veja-se o elogio dirigido às mulheres bonitas, cheias de curvas: “pneumáticas”. A lógica automobilística-industrial cobriu toda a mentalidade social. Até o sinal da cruz católico é substituído por um “T”, em alusão ao primeiro modelo de carro de Ford.
Mas o tema transversal mais forte na história é o da biologia. A engenharia genética estava tão avançada nesta Inglaterra distópica que era possível fazer “seres” humanos destinados à certas tarefas: com maiores capacidades mentais para atividades de governo e mais avantajados fisicamente, mas ao mesmo tempo mentalmente desprivilegiados, para atividades laborais.
O problema ético fica evidente: que direito tem os tecnocratas de destinarem certas pessoas ao trabalho pesado e outras ao trabalho intelectual?
As questões de engenharia genética levantadas em “Admirável mundo Novo” ganham maior relevância após termos feitos tantos avanços nessa área na ciência atual, tais como mapeamento do DNA, clonagem e manipulação de células tronco. E isso que a obra foi escrita em 1931!
Mas é quando aprofundamos na biografia de Aldous Huxley que percebemos a razão de sua profundidade em temas da biologia. Seu avô foi ninguém menos que Thomas Henry Huxley, o biólogo conhecido como o “buldogue de Darwin”, por defender com afinco a teoria da evolução. Seu filho, Leonard Huxley, foi escritor de biografias, editor e professor. Leonard foi pai de Sir Julian Sorell Huxley, Andrew Huxley e Aldous Huxley. Sir Julien também foi biólogo e escreveu muitos artigos e livros sobre a evolução darwinista, além de ter ocupado posições de destaque como diretor da Unesco e outras, se consagrando como um popularizador da ciência.  Andrew Huxley recebeu o prêmio Nobel de fisiologia ou medicina por estudos no sistema nervoso central. Ele foi o segundo Huxley a presidir a importante Royal Society na Inglaterra ( o primeiro foi seu avô), uma instituição destinada ao progresso da ciência.
Aldous Huxley
Assim, Aldous Huxley possuía em sua árvore genealógica diversos ramos de cientistas de renome e essa influência transparece em seu texto. Assuntos como os limites éticos da biologia deviam ser recorrentes entre os Huxley. Essa influência era sentida até por quem teve um pequeno contato com o Huxley, como é o exemplo daquele que viria a se tornar um famoso escritor, H. G. Wells, aluno de Thomas Henry Huxley. A obra “A ilha do Doutor Moreau” se espelhou nas atividades do avô Huxley (fiz resenha aqui).
Depois de 27 anos após a publicação de sua obra, Huxley volta a escrever “Admirável Mundo Novo revisitado” em 1958, comentando as novas descobertas cientificas e inclusive fazendo paralelos com outra obra distópica, “1984” de George Orwell, que havia sido publicado em 1949. Este retorno de Huxley trata-se muito mais de um diálogo com o leitor do que uma outra obra de ficção. Neste livro, Huxley examina os avanços da tecnologia e da ciência e como suas profecias ainda poderiam se cumprir no futuro. Devido aos avanços tecnocientíficos, ele enfatiza que o futuro deve se assemelhar muito mais a “Admirável Mundo Novo” do que a “1984”. Ele percebe “que a tecnologia moderna tem conduzido à concentração do poder econômico e político, e ao desenvolvimento de uma sociedade controlada (inflexivelmente nos Estados totalitários, polida e imperceptivelmente nas democracias) pelo Alto Negócio e pelo Alto Governo.”
Isso ele percebe em 1958, um período em que a biologia dá grandes saltos, através da disciplinas da genética comportamental, da sociobiologia, da psicologia evolucionista. E, talvez a descoberta mais importante nesta ramo da ciência, ocorrera alguns anos antes: em 1953, James Watson e Francis Crick descobrem a estrutura do DNA, fato pelo qual receberiam o prêmio Nobel. Com as possibilidades quase infinitas liberadas por tal descoberta, a biologia nunca mais seria a mesma. Foi aberta a caixa de pandora, cujas consequências, se mal utilizada, só podem ser previstas de forma distópicas em obras como “Admirável Mundo Novo.” 

atualização: H. G. Wells compôs uma obra em três volumes com Julien Huxley chamada "The science of Life", publicada entre 1920-1930. Esses livros são considerados os primeiros livros-texto de biologia.

https://en.m.wikipedia.org/wiki/The_Science_of_Life

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