A história de “Admirável Mundo
Novo” de Aldous Huxley passa-se em Londres no ano de 2540, ou melhor, em 632
depois de Ford. Nessa sociedade, as pessoas são pré-condicionadas
biologicamente e psicologicamente para viverem de acordo com
certas regras e são dispostas em castas. Cada casta cumpre uma função nessa
sociedade harmoniosa, desde os trabalhadores braçais até a elite intelectual.
As pessoas não mais são geradas por gravidez e sim gerados e alimentados em
incubadoras. “O princípio da produção em série [fordista] aplicado enfim à
biologia”. As pessoas são condicionadas a odiar os livros e às flores, numa
negação do racional e da contemplação do belo. Então, logo nos capítulos
iniciais do livro encontramos o primeiro inconformado: Bernard Marx e começamos
a perceber a profundidade da obra de Huxley.
Essa é a segunda vez que leio
“Admirável Mundo Novo”. Fiquei impressionado com a quantidade de detalhes que
consegui perceber nesta nova leitura. A diferença temporal de uns dez anos que
separa a primeira da segunda leitura fizeram muita diferença. E aqui deixo um
conselho: releiam livros que te surpreenderam à muito tempo atrás. A releitura
pode revelar muitos detalhes que nos passaram despercebidos da primeira vez,
porque estamos mais maduros e realizamos outras leituras. Claro que alguns livros
vão nos trazer decepções quando relidos. Aquele livro que era sensacional
quando lidos na adolescência não é mais tão excepcional. Mas alguns, como “Admirável”,
só podem melhorar com a experiência.
Por exemplo, quando li pela
primeira vez o que mais me chamou a atenção foi a trajetória dos personagens
em si, e prestei pouca atenção às questões sociais, mesmo tendo percebido o tom
distópico de crítica social. Agora as questões sociais e cientificas se
mostraram muito mais fortes, reforçadas pelas minhas leituras em torno da
filosofia da ciência. Mas não é necessário um grande conhecimento científico
para aproveitar a narrativa de Huxley, e sua ironia pode ser percebida
facilmente.
A começar pelo personagem
principal, Bernard Marx. Seu nome, Bernard, faz referência à George Bernard Shaw, um
escritor de peças de teatro que estava vivo na época de Huxley. Shaw era um
socialista e advogado dos direitos políticos igualitários para as mulheres –
isso se encaixa muito bem quando percebemos o nojo de Bernard quando Lenina
(outra ironia) é tratada como um objeto sexual. O sobrenome Marx, que dispensa
apresentação, se inspira no defensor do comunismo que acreditava que as classes baixas
ou trabalhadoras se levantariam e tomariam o lugar das elites. A ironia é que
Bernard pertence à casta de elite “Alfa” e por fim vai preferir o luxo
superficial da alta sociedade, sem se preocupar com questões sociais.
A personagem Lenina Crowne faz alusão à Lenin,
o revolucionário comunista russo que acaba se tornando o líder da União
Soviética na década de 1920. Lenina é conformista com a situação à sua volta
e acaba sendo uma ferramenta nas mãos do governo totalitário. Isso aponta a ideia do autor de que
todo “leninismo” acaba incorrendo em conformismo.
Todos os nomes de personagens que
aparecem na história carregam uma ambiguidade e uma ironia fina. Não
cabe aqui analisar todas as referências, mas deixo esse link para quem se
interessar: http://www.shmoop.com/brave-new-world/characterization.html
(Huxley não deixa nada intocado.
No capítulo V, a famosa abadia de Westminster se tornou em um cabaré!)
A crítica à sociedade
tecnocientífica é o alvo da argumentação de Huxley, em uma visão determinística.
O perigo de confiar em tecnocratas que apontam o caminho que deve ser seguido pela
ciência e pela tecnologia necessariamente levaria à um totalitarismo. Mais
tarde Jacques Ellul falaria da tecnificação do cotidiano que estava ocorrendo
no século XX e isso transparece em “Admirável Mundo Novo”. Veja-se o elogio
dirigido às mulheres bonitas, cheias de curvas: “pneumáticas”. A lógica
automobilística-industrial cobriu toda a mentalidade social. Até o sinal da
cruz católico é substituído por um “T”, em alusão ao primeiro modelo de carro
de Ford.
Mas o tema transversal mais forte
na história é o da biologia. A engenharia genética estava tão avançada nesta
Inglaterra distópica que era possível fazer “seres” humanos destinados à certas
tarefas: com maiores capacidades mentais para atividades de governo e mais
avantajados fisicamente, mas ao mesmo tempo mentalmente desprivilegiados, para
atividades laborais.
O problema ético fica evidente:
que direito tem os tecnocratas de destinarem certas pessoas ao trabalho pesado
e outras ao trabalho intelectual?
As questões de engenharia genética
levantadas em “Admirável mundo Novo” ganham maior relevância após termos feitos
tantos avanços nessa área na ciência atual, tais como mapeamento do DNA,
clonagem e manipulação de células tronco. E isso que a obra foi escrita em
1931!
Mas é quando aprofundamos na
biografia de Aldous Huxley que percebemos a razão de sua profundidade em temas
da biologia. Seu avô foi ninguém menos que Thomas Henry Huxley, o biólogo conhecido
como o “buldogue de Darwin”, por defender com afinco a teoria da evolução.
Seu filho, Leonard Huxley, foi escritor de biografias, editor e professor.
Leonard foi pai de Sir Julian Sorell Huxley, Andrew Huxley e Aldous Huxley. Sir
Julien também foi biólogo e escreveu muitos artigos e livros sobre a evolução
darwinista, além de ter ocupado posições de destaque como diretor da Unesco e
outras, se consagrando como um popularizador da ciência. Andrew Huxley recebeu o prêmio Nobel de
fisiologia ou medicina por estudos no sistema nervoso central. Ele foi o
segundo Huxley a presidir a importante Royal Society na Inglaterra ( o primeiro
foi seu avô), uma instituição destinada ao progresso da ciência.
Aldous Huxley |
Assim, Aldous Huxley possuía em
sua árvore genealógica diversos ramos de cientistas de renome e essa influência
transparece em seu texto. Assuntos como os
limites éticos da biologia deviam ser recorrentes entre os Huxley. Essa influência
era sentida até por quem teve um pequeno contato com o Huxley, como é o exemplo
daquele que viria a se tornar um famoso escritor, H. G. Wells, aluno de Thomas Henry Huxley. A obra “A ilha do Doutor Moreau” se espelhou nas atividades do avô
Huxley (fiz resenha aqui).
Depois de 27 anos após a
publicação de sua obra, Huxley volta a escrever “Admirável Mundo Novo
revisitado” em 1958, comentando as novas descobertas cientificas e inclusive fazendo
paralelos com outra obra distópica, “1984” de George Orwell, que havia sido
publicado em 1949. Este retorno de Huxley trata-se muito mais de um diálogo com
o leitor do que uma outra obra de ficção. Neste livro, Huxley examina os avanços da tecnologia e da ciência e como suas profecias ainda poderiam se
cumprir no futuro. Devido aos avanços tecnocientíficos, ele enfatiza que o
futuro deve se assemelhar muito mais a “Admirável Mundo Novo” do que a “1984”. Ele
percebe “que a tecnologia moderna tem conduzido à concentração do poder
econômico e político, e ao desenvolvimento de uma sociedade controlada
(inflexivelmente nos Estados totalitários, polida e imperceptivelmente nas
democracias) pelo Alto Negócio e pelo Alto Governo.”
Isso ele percebe em 1958, um período
em que a biologia dá grandes saltos, através da disciplinas da genética comportamental,
da sociobiologia, da psicologia evolucionista. E, talvez a descoberta mais
importante nesta ramo da ciência, ocorrera alguns anos antes: em 1953, James
Watson e Francis Crick descobrem a estrutura do DNA, fato pelo qual receberiam o
prêmio Nobel. Com as possibilidades quase infinitas liberadas por tal
descoberta, a biologia nunca mais seria a mesma. Foi aberta a caixa de pandora,
cujas consequências, se mal utilizada, só podem ser previstas de forma
distópicas em obras como “Admirável Mundo Novo.”
atualização: H. G. Wells compôs uma obra em três volumes com Julien Huxley chamada "The science of Life", publicada entre 1920-1930. Esses livros são considerados os primeiros livros-texto de biologia.
https://en.m.wikipedia.org/wiki/The_Science_of_Life
atualização: H. G. Wells compôs uma obra em três volumes com Julien Huxley chamada "The science of Life", publicada entre 1920-1930. Esses livros são considerados os primeiros livros-texto de biologia.
https://en.m.wikipedia.org/wiki/The_Science_of_Life
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