Neste 4o post sobre Missão integral, chegamos à letra "A" do nosso acrônico, que trata dos Autores, do histórico e contexto do surgimento da MI. Portanto devemos iniciar com a definição do que é MI.
Por volta da década de 1960 se percebeu uma forte
polarização entre a “salvação das almas” e a missão social. Neste sentido, em
Bogotá, Colômbia, em 1969, se realizou o 1º Congresso Latino-Americano de
Evangelização – CLADE I. Neste congresso surgiu a ideia de se criar a
Fraternidade Latino-Americana – FTL, que se efetivou em 1970 com nomes como
Rene Padilha, Samuel Escobar entre outros. A maioria dos integrantes da FTL era
oriunda de movimentos nacionais vinculados à Comunidade Internacional de
Estudantes Evangélicos (IFES), representado no Brasil pela ABU, e serviu como
um gerador da TMI.
Só para colocar em perspectiva, em 1971, o padre
peruano Gustavo Gutierrez lança o seu livro “Teologia da Libertação”, dando
início àquela escola de pensamento. Como deixa bem claro Robinson Cavalcanti, a
FTL não foi criada contra a Teologia da Libertação, pois a antecede (Rene
Padilha, Igreja: agente de transformação, p. 28).
O Congresso de Lausanne, na Suíça, em Julho de 1974,
produziu o Pacto de Lausanne, sendo considerado, ao lado do Credo Apostólico e
da Confissão de Westminster, como um dos principais textos doutrinários do
Cristianismo. O que ficou desse encontro foi uma renovação na responsabilidade
sobre missão mundial, em espírito de cooperação, e com visão integral.
O problema que foi debatido, e que Robinson
Cavalcanti assinala “é que na História da igreja, periodicamente surgem
movimentos que ora enfatizam algumas dessas dimensões, ora se esquecem ou negam
outras. Há que queira seguir a Pedro, e não a Jesus, permanecendo acampado no
Monte, no “shekinah” e outros querem ir direto aos vales e aldeias, sem buscar
a comunhão e a presença de Deus no Monte, em unilateralismos, parcializações e
desobediências.” (Padilha, Igreja:
agente de transformação, p. 32).
Segundo Robinson Cavalcanti “a missão integral se
move a partir de uma Espiritualidade Integral que inclui a adoração, a reflexão
e a ação, outra vez sem cair no unilateralismo do misticismo alienante, do
academicismo pedante ou do ativismo árido.”
Alguns
pontos essenciais discutidos em Lausanne (o evangelho todo, para o homem todo,
para todo homem).
Disponível em http://www.lausanne.org/pt/pt/1662-covenant.html
A
natureza da evangelização: “ A nossa presença cristã no
mundo é indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de
diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender. Mas a
evangelização propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e histórico como
Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir as pessoas a vir a ele
pessoalmente e, assim, se reconciliarem com Deus. Ao fazermos o convite do
evangelho, não temos o direito de esconder o custo do discipulado. Jesus ainda
convida todos os que queiram segui-lo e negarem-se a si mesmos, tomarem a cruz
e identificarem-se com a sua nova comunidade. Os resultados da evangelização
incluem a obediência a Cristo, o ingresso em sua igreja e um serviço
responsável no mundo.”
A Responsabilidade Social Cristã
“Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos
partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade
humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque a
humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça,
religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade
intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.
Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes
considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora
a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social
evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a
evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever
cristão. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de
Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus
Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda
forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de
denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem
Cristo, nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar mas
também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo injusto. A salvação que
alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas
responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.”
A Igreja e a Evangelização
“Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como o Pai o
enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo profunda e sacrificial.
Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e penetrar na sociedade
não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da igreja a evangelização é
primordial. A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o
evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do propósito
divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para difundir o
evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz deve, ela própria, ser marcada pela
Cruz. Ela torna-se uma pedra de tropeço para a evangelização quando trai o
evangelho ou quando lhe falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas
pessoas, ou uma honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em
promoção e finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que uma
instituição, e não pode ser identificada com qualquer cultura em particular,
nem com qualquer sistema social ou político, nem com ideologias humanas.”
Porquê
MI?
“a falta de valorização das dimensões mais amplas do
evangelho inevitavelmente conduz a uma distorção da missão cristã. O resultado
é uma evangelização que concebe o individuo como uma unidade autônoma – um
Robinson Crusoé a quem o chamado de Deus chega na solidão de uma ilha – cuja
salvação se realiza exclusivamente em termos de sua relação com Deus. Perde-se
de vista que o indivíduo não existe isoladamente e que portanto não se pode
falar de salvação sem que se faça referência à relação do homem com o mundo do
qual ele faz parte”. (Rene Padilha, Missão integral. Ensaios sobre o reino e a
igreja, p. 16).
Em sua oração sacerdotal, Jesus Cristo implorou
assim por seus discípulos: “Já não estou no mundo, mas eles continuam no mundo,
ao passo que eu vou para junto de ti. (...) Não peço que os tire do mundo e,
sim, que os guardes do mal. Eles não são do mundo como também eu não sou.” (Jo
17.11; 15-16). Fica colocado o paradoxo do discipulado cristão em relação com o
mundo: estar no mundo, mas não ser do mundo.
Cosmovisão cristã – a pobreza é fruto do pecado, da
queda do homem. Não podemos portanto, basear nossa propulsão evangelística
somente às questões sociais e econômicas, mas também a questão espiritual.
Não é uma questão de pobres e ricos, mas sim de
justiça. E é por isso que os ricos são condenados nas escrituras tantas vezes.
Em um mundo caído, os ricos e poderosos tem historicamente tirado vantagens de
sua posição para aumentar seus privilégios às custas dos pobres e fracos.
Gnosticismo
gospel
Todas as escolas dominantes de filosofias hindus,
budistas e da Nova Era nos oferecem libertação – entendida como liberação das
cadeias de nossa humanidade. O caminho da transcendência suprema é nos livrar
de nossa individualidade, corpo físico e ligações a este mundo sem significado
de existência histórica, o mundo ordinário e cotidiano de trabalho e do lar.
Nossa humanidade é o que bloqueia o caminho para a transcendência ou união com
o divino.
A encarnação fala de um Deus que está ligado ao
nosso mundo, que mergulha em nossa trágica história, que abraça nossa
humanidade com toda sua vulnerabilidade, dor e confusão, incluindo nossa
maldade e morte. Deus não está ausente de, nem é irrelevante a, nossa era,
porque conhece, por si próprio, a experiência de sofrimento e morte injustos.
Aqui está um Deus que vem a nós não como mestre mas como servo, que se curva
para lavar os pés de seus discípulos e para sofrer a brutalização e
desumanização nas mãos de suas criaturas. Ao identificar-se conosco em nossa
humanidade, ele atrai o humano a sua própria vida divina.
(Ramachandra, Peskette. A mensagem da missão. P. 80)
N.T. Wright, em “Surpreendido pela esperança”, analisando
as acepções acerca do “futuro cósmico” (capítulo 5), percebe como os cristãos
hoje estão sendo atraídos por uma visão de futuro que apela para a destruição
final da ordem criada e a um destino puramente “espiritual”, no sentido de ser
completamente não-material. Pode-se traçar as origens dessa forma de pensamento
em Platão. “Para ele, assim como para Buda, o mundo presente constituído de
espaço, tempo e matéria é apenas uma ilusão, como sombras tremeluzindo em uma
caverna; cabe ao homem entrar em contato com a verdadeira realidade, que está
além do espaço, do tempo e da matéria. Para Platão, essa realidade seria a
‘forma’ eterna, e para Buda, o eterno ‘nada’.”
Assim, a visão de
Platão rejeitava o fenômeno da matéria. Não é apenas o mal que está errado no
mundo; é a variação e a deterioração, a fragilidade da matéria: o crescimento e
o florescimento humanos são prenúncios de sofrimento e morte. Para os
platônicos, portanto, assim como para os budistas e hinduístas, todas essas
coisas são sinais de que fomos feitos para uma realidade bem diferente, não uma
realidade constituída por espaço, tempo e matéria, mas um mundo de existência
puramente espiritual, no qual estamos livres das algemas da mortalidade. Assim,
para nos livrarmos da mortalidade, deveríamos nos livrar de tudo que pode se
deteriorar e morrer, ou seja, nosso próprio corpo.
A
influência platônica sobre o pensamento cristão pode ser sentido desde o
começo, principalmente no fenômeno conhecido por gnosticismo. Como Platão, os
gnósticos acreditavam que o mundo material era um lugar inferior e escuro, e
intrinsecamente mau. Dentro desse mundo, porém, podiam ser encontradas algumas
pessoas que estavam ali por um propósito diferente. Esses filhos da luz seriam
como estrelas cadentes, pequenas centelhas de luz, geralmente ocultas por um
corpo material grosseiro. Entretanto, uma vez que tomasse conhecimento de quem
eles eram, esse “conhecimento” (em grego gnosis)
lhes permitiria entrar em uma existência espiritual, na qual o mundo material
não mais teria importância. Após terem
entrado nessa existência espiritual, eles passariam a viver espiritualmente,
por meio da morte, em um mundo infinito, além do espaço, do tempo e da matéria.
Muitos
cristãos ocidentais tem se deixado contaminar por uma versão amenizada do
pensamento de Platão. Uma grande quantidade de hinos e poemas cristãos revela
uma tendência ao gnosticismo. A espiritualidade “de passagem” (como na canção
que diz: “Este mundo não é meu lar/ eu estou apenas de passagem”), embora
tenha, é claro, algumas afinidades com o cristianismo clássico, estimula uma atitude agnóstica: o mundo
criado é, na melhor das hipóteses, um lugar irrelevante, escuro, perverso e
sombrio, onde as almas imortais, que existiam originalmente em uma esfera
diferente, aguardam ansiosamente o momento de retornar a ela, tão logo isso
lhes seja permitido. Há uma suposição geral, entre os cristãos do Ocidente, de
que o motivo principal para alguém se tornar cristão é a garantia de poder “ir
para o céu quando morrer.” Textos que não se referem ao céu muitas vezes são
interpretados como referindo-se a ele, e textos que dizem o oposto, como
Romanos 8.18-25 e Apocalipse 21-22, são simplesmente ignorados, como se não
existissem.
Irineu
de Lyon, ainda no século II d. C. (cerca de 180 d.C), compôs uma obra chamada
Contra Heresias, para combater o gnosticismo, que estava ameaçando a igreja
primitiva.
A
sua antropologia parte da afirmação de que o Homem - entenda-se: a unidade
inseparável de corpo e alma (Adversus Haereses V, 6, 1) -, sendo criado por
Deus, é bom. Contudo, por ser uma criatura, o Homem não é perfeito e, assim,
está propenso a ir contra sua natureza e optar livremente por decair, sem,
contudo, que tal faça destruir a sua natureza (Adversus Haereses IV, 37, 5).
A
conclusão de Wright nesta parte é que “as consequências podem ser sentidas em
todos os lugares na igreja ocidental e nas visões de mundo geradas pelo
cristianismo.” Já que Deus pretende em breve destruir o universo, não
precisamos nos preocupar com os problemas ambientais. Entretanto, isso se
baseia em uma falsa premissa e um entendimento errado da obra de Deus. Assim é
necessário compreender “o que o mundo inteiro aguarda” na visão Cristã
primitiva.
N.
T. Wright nos leva a olhar primeira para Filipenses 3.20-21 em busca de uma
exegese mais aprofundada da passagem.
“Mas a nossa cidade
está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,
Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas.
(Filipenses 3:20-21)
Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas.
(Filipenses 3:20-21)
Para compreendermos
melhor o texto devemos entender o contexto desta passagem. Filipos era uma
colônia romana. O imperador Augusto havia estabelecido seus veteranos ali, após
diversas batalhas. Nem todos que moravam ali eram cidadãos romanos, mas todos
conheciam o significado da palavra “cidadania”. As colônias romanas surgiram
por dois motivos. Primeiramente, com o objetivo de estender a influência romana
ao redor do mundo mediterrâneo, criando células e redes de pessoas leais a
César em um contexto mais amplo. Segundo, por ser uma forma de evitar os
problemas de superlotação na capital. O imperador não queria soldados
aposentados, com tempo (e sangue) nas mãos, perambulando por Roma, prontos a
causar problemas.
Assim, quanto Paulo
diz, “nossa pátria está nos céus”, ele não quer dizer que em seguida à morte
iremos morar no céu. Ele está dizendo que o Salvador, o Senhor, o Rei Jesus –
todos estes títulos imperiais – virá do céu para a terra, para mudar a condição
atual e a situação de seu povo. A palavra-chave aqui é “transformar”: ele
transformará nossos frágeis corpos atuais para torná-los como seu corpo
glorioso. Jesus não dirá que nossos corpos atuais são supérfluos e, portanto,
podem ser descartados. Nem irá simplesmente melhorá-los. Em uma manifestação de
grande poder – o mesmo poder que o ressuscitou, como Paulo diz em Efésio
1.19-20 – ele transformará nossos corpos atuais em corpos semelhantes ao dele,
como parte de sua tarefa de rejeitar todas as coisas a si mesmo. Embora esteja
se referindo primeiramente à ressurreição humana, Filipenses 3 indica que ela
ocorrerá no contexto da transformação vitoriosa de todo o cosmos.
Apocalipse 21 e 22
também são passagens fundamentais no argumento de Wright. Ali vemos a nova
Jerusalém descendo do céu, como uma noiva adornada para o seu marido. Como
vimos em Filipenses 3, não somos nós que vamos para o céu; é o céu que vem a
terra. “esta é uma rejeição definitiva a
todos os tipos de gnosticismo, a toda visão de mundo que entende que o
propósito final é a separação entre Deus e o mundo, entre matéria e espírito,
entre terra e céu. É a resposta final à oração do Pai-nosso: que o Reino de
Deus venha e que a sua vontade seja feita assim na terra como no céu. É a isso
que Paulo está se referindo em Efésio 1.10, ao afirmar que o plano de Deus era
convergir em Cristo todas as coisas, tanto as do céu como as da terra.” (p.
120).
“A promessa contida nessa passagem, portanto, é
o que Isaías previu: a promessa de um novo céu e uma nova terra, em
substituição ao antigo céu e à antiga terra, que estavam destinados à
destruição. Isso não quer dizer que Deus começará tudo do zero.”
Entre a ascensão de Cristo e a parousia, “segundo vinda”, temos que a tarefa da igreja é
libertar-se de duas coisas: da tentativa de edificar o reino de Deus por seu
próprio esforço e do desespero por se imaginar incapaz de fazer alguma coisa
até a volta de Jesus. Nós não “edificamos o reino” por nosso próprio esforço, mas para
o reino. Tudo o que fazemos no presente com fé, esperança e amor, em obediência
ao nosso Senhor que ascendeu ao céu e no poder do seu Espírito, será
aperfeiçoado e transformado quando ele se manifestar. Isso traz um sinal de
juízo, como Paulo deixa claro em 1 Coríntios 3.10-17. O “dia” revelará as obras
de cada um.
Mas por que receberemos novos corpos? De acordo com
os cristãos primitivos, o propósito desse novo corpo será governar com
sabedoria sobre o novo mundo de Deus. Esqueça aquelas imagens de anjos tocando
harpas e perambulando para lá e para cá. Haverá trabalho a fazer, e teremos
satisfação em fazê-lo. Todos os talentos e habilidades que colocamos a serviço
de Deus nessa vida presente – e, talvez, também, os interesses e gostos dos
quais abrimos mão porque conflitavam com nossa vocação – serão aperfeiçoados,
dignificados e devolvidos a nós para serem exercidos para a glória de Deus. Há
várias promessas no Novo Testamento sobre o povo de Deus “reinando”, e
certamente não se pode dizer que sejam apenas palavras vazias. (veja-se, por
exemplo, Rm 5.17; 1 Co 6.2,3; 2 Tm 2.12;
Ap. 1.6; 5.10; 20.4; 22.5; Lc 19.17, 19.) A visão bíblica do futuro de Deus
inclui a renovação de todo o cosmos, e portanto, teremos muito trabalho pela
frente, novos projetos inteiros a serem assumidos. Em termos da visão da
criação original em Gênesis 1 e 2, o jardim precisará de cuidados novamente e
os animais deverão receber um novo nome.
Nenhum comentário:
Postar um comentário