sábado, 14 de maio de 2016

O alcance cósmico da redenção. Uma resenha de "Visões e ilusões políticas" de David T. Koyzis

Publicado em 2003 nos Estados Unidos e em 2014 no Brasil, "Visões e Ilusões políticas" (Vida Nova, aqui) se constitui uma obra de fôlego na busca por analisar as ideologias políticas contemporâneas do ponto de vista cristão. O autor, David T. Koyzis, doutor em filosofia e professor de Ciência Política na Redeemer University College




Possuí uma tradição intelectual ligada aos chamados "neo-calvinistas", que foram influenciados pelas ideias e práticas dos reformadores holandeses Abraham Kuyper, Eric Voegelin e Herman Dooyeweerd. As noções fundamentais de motivo base religioso de criação-queda-redenção, de soberania das esferas e graça comum, caras aos reformadores, perpassa toda a análise de Koyzis.  
Traçando um panorama bem fundamentado acerca dos diversos posicionamentos políticos, o autor nos conduz para além do espectro direita/esquerda e nos faz questionar a base de nossas próprias crenças. Nenhuma vertente política permanece incólume em sua crítica; todas possuem rastros de idolatria. Idolatria aqui seria definida como sobre-favorecimento de um elemento da criação de Deus, transformando esse elemento em uma espécie de deus. 
Assim, logo de início o autor se preocupa em apontar a relação entre idolatria e ideologia, qual seja, a deificação de algo dentro da criação de Deus, vendo tal deus produzido por mãos humanas como fonte de salvação. Enquanto que o cristianismo vê Jesus Cristo como a salvação, "as ideologias dizem que a salvação vem a nós através, por exemplo, da maximização da liberdade individual, da propriedade comum, da libertação do domínio estrangeiro, da submissão dos indivíduos à vontade geral etc." (p. 35). 
Isso não significa que a salvação cristã deva estar desligada do campo político. Pelo contrário, o mandato divino de fazer justiça aplica-se à participação na política. Mas, alerta o autor, em todo o debate político atual os parâmetros da discussão têm sido ditados por uma religião secularista, cuja principal doutrina é a crença na autonomia humana. E daí advém as dúvidas que dividem as ideologias: quem é o portador dessa autonomia? o indivíduo ou alguma forma de comunidade?
Tendo esse arcabouço teórico que acabei de expor, Koyzis examina cada uma das principais ideologias (o liberalismo, o conservadorismo, o nacionalismo, a democracia e o socialismo) buscando compreender em cada uma os seguintes pontos: 
. qual sua base na criação de Deus?
. em que pontos elas tratam as facetas da criação corretamente, apesar de as terem deificado?
. quais as incoerências produziram tensões internas dentro da própria ideologia?
. o que elas veem como fonte do mal?
. onde elas localizam a fonte da salvação?
. e de que forma elas enfocam o lugar que cabe por direito à política neste mundo criado por Deus?

Percebe-se que, por essas perguntas, uma auto-análise se faz necessária dentre todos nós. Será que nosso senhorio está em Cristo, o soberano de todas as esferas ou em algum programa político?

Em vista de tudo isso, é preciso "Transcender as ideologias" tendo consciência de que vivemos uma pluriformidade social. Este é o título do capítulo 7. Antes de chegar nele, queria destacar alguns pontos problemáticos em cada ideologia política apontados por Koyzis.

Liberalismo. O problema nesta linha de pensamento política reside na crença fundamental na autonomia humana. Ser autônomo é governar a si mesmo segundo a lei que se escolheu para si. Se meus atos violam o direito de propriedade que os outros têm sobre si próprias, eu transgredi o primeiro preceito liberal e devo ser responsabilizado pelo que fiz. Entretanto, sem a autoridade política, não há maneira eficaz de implementar essa responsabilização. Aqui está o dilema central da autonomia individual do liberalismo. 


Conservadorismo. Aqui, a questão reside em quais tradições se deve preservar e quais se devem descartar. Para Koyzis, os conservadores muitas vezes subestimam o caráter dinâmico das tradições, instituições e moral. Para ele, "mudança e desenvolvimento não são defeitos, mas partes inalienáveis da criação tal como Deus a estruturou". (p. 105). 


Nacionalismo. Esta linha, que tem o erro de muitas vezes deificar a nação, tem a tendência de degenerar em racismo, etnocentrismo, o que acaba por excluir alguns grupos. 


Democracia. Talvez uma das mais deificadas linhas políticas no ocidente, a noção da infabilidade da vox populi - a "voz do povo", isto é, a ideia de que uma política pública é correta simplesmente porque a maioria a apoia, é uma perigosa ideologia. O autor cita o caso dos Estados Unidos que, no começo da década de 1970 tentou tirar o processo de indicação dos candidatos à presidência das mãos dos políticos, entregando-o "ao povo". O resultado não foi um aumento da responsabilidade do presidente diante do eleitorado, mas sim um chefe de Estado ainda menos capaz de governar, pois tem menos apoio do congresso e das autoridades locais, mesmo as de seu próprio partido. 

Os cidadãos de uma democracia tipicamente fazem exigências contraditórias aos seus políticos e aos sistema de governo, esperando que os políticos acatem os desejos do povo, mas ao mesmo tempo exigindo uma liderança forte. Assim, vemos que o povo está longe de ser ser voz infalível. 

Socialismo. Talvez um dos maiores problemas com o socialismo seja exatamente uma concepção errada que está no âmago de seu ideário: a distribuição equitativa dos recursos econômicos. Não que a ideia em si seja errada, mas a pressuposição de como ocorre a pobreza, fixando-a unicamente como causada por um arranjo econômico inadequado baseado na propriedade privada, é insuficiente. Se olharmos para os pobres como meras vítimas de circunstâncias exteriores, retirando deles qualquer responsabilidade, corremos o risco de desumanizá-los. Da mesma forma que, se enxergarmos os pobres como inteiramente culpados por sua situação, ignorando fatores políticos e econômicos, estaremos incorrendo em injustiça. 

Assim, como transcender as ideologias? No capítulo 7, David Koyzes começa a esboçar algumas ideias para tal. 

Primeiramente, devemos ter, como cristãos, uma clara noção do motivo básico bíblico de criação, queda e redenção. Nesta visão correta do cristianismo, 
Deus redime a pessoa como um todo, não somente a sua vida espiritual ou moral. Assim, o alcance cósmico da redenção em Jesus Cristo e da renovação do Espírito Santo não se resume à oração diária, à leitura da Escritura e à presença semanal na reunião da igreja, embora essas coisas certamente façam parte dessa vida. O alcance cósmico da redenção significa que a vida como um todo é redimida, incluindo a família, o trabalho, a recreação, a vida acadêmica e a vida política. Se o cosmos inteiro é um campo de batalha contínua entre os espíritos da fé e os da incredulidade, temos a responsabilidade dada por Deus de discernir os espíritos em cada uma dessas esferas." (p.230).

Devemos estar cientes da pluralidade social, assim o cristão não deve procurar de imediato por uma forma abrangente de construção de uma nova ordem social. Basicamente, para Koyzis, uma perspectiva política não idólatra é um tipo de pluralismo que rejeita os monismos reducionistas das ideologias, levando em consideração o que cada forma de pensamento humano pode contribuir. Mas sempre reconhecendo a soberania absoluta de Deus, pois do contrário, atribuiremos a última instância de soberania a algum elemento qualquer deste mundo, o que é o mal das ideologias.  

Nos aproximando do final do livro, Koyzis nos aponta duas abordagens cristãs como alternativas não ideológicas. De um lado, a tradição católica romana, cujo interesse pela filosofia de Aquino retomado no final do século XIX procurou reconhecer a pluralidade social. De outro lado, os reformadores holandeses, van Prinsterer, Kuyper e Dooyeweerd que também afirmaram a pluralidade e a noção de soberania das esferas, que afirma que cada aspecto da sociedade como família, escola, empresa, trabalho, são soberanos em suas respectivas esferas. 


Muito mais pode ser dito sobre esse livro, mas aí esbocei alguns pontos interessantes para estimular o debate. É um livro profundo e ao mesmo tempo acessível, devido à escrito do autor. Também é um livro bastante equilibrado, no qual percebemos a vontade do autor de ouvir todos os lados. É um livro que nos convida ao diálogo, sem desmerecer nenhum dos lados no espectro político, mas antes de tudo, nos faz repensar nossas ideologias e onde temos colocados nos esperanças, nos atraindo de volta para o centro da vontade de Deus. A nossa confiança deve estar em Deus, aquele que redime sua criação. Nossa missão na terra é reconciliar toda a criação com ele, sem deixar um único centímetro quadrado de fora. 

Deixo minha recomendação para que leiam, reflitam e dialoguem sobre esse livro, fundamental para os tempos que temos vivido. 

3 comentários:

  1. Muito Bom!
    Agora me tira uma dúvida, o Eric Voegelin pertence a tradição reformada neocalvinista?
    Ele foi cristão reformado ?

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    1. obrigado pelo comentário. Agora, acho que o Voegelin influencia tanto os neocalvinistas que achei que ele fosse. Parece que não. Parece que ele era luterano, mas não consegui encontrar essa informação. Se conseguir, compartilha conosco!

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  2. Gostei muito da resenha. Boa base para o café teológico sobre política que teremos em casa! :)

    Ester, mulher do Paulo Marins, de Curitiba

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