Com uma escrita carregada de
ironias e ao mesmo tempo complexa, Terry Eagleton, britânico e professor de literatura,
nos apresenta um balanço dos estudos de ética pós-moderna. Será que o evangelho
pode servir como argumento filosófico para compreender valores éticos? A busca
por uma resposta é a tarefa monumental que Eagleton se propõe a fazer neste
livro.
Em certo ponto onde Eagleton contrapõe
Lévinas, Derrida e Badiou - pensadores pós-modernistas - e o cristianismo,
conseguimos extrair posições valorosas sobre a questão de justiça, misericórdia,
responsabilidade e ajuda ao próximo.
Para
Eagleton, as figuras de Abraão e de Jesus se assemelham, no sentido de que
ambas são críticas contundentes da ordem simbólica no sentido do parentesco. Abraão
por se dispor a matar o sangue de seu próprio sangue e Jesus porque sua atitude
para com a família é quase sempre de uma indiferença brutal.
O
conflito em Derrida entre singularidade absoluta e a responsabilidade universal
é um falso dilema para Eagleton. Por exemplo: fato de que, ao alimentar meu
gato estou inevitavelmente negligenciando todos os outros gatos carentes do
mundo não é, como considera esse filósofo, uma questão de culpa; eu só posso
sentir culpa, sensatamente, por atos ou omissões dos quais eu seja culpado. Não
posso alimentar todos os gatos do planeta, nem mesmo a melhor boa vontade do
mundo e com uma frota de caminhões carregados de comida de gato. Neste caso, a
responsabilidade não é infinita.
“Com
absurdidade igualmente grandiloquente, Lévinas observa, à maneira de um
desorientado astro do rock em campanha, que, ao tomarmos café a cada manhã, “matamos”
um etíope que não tem café para beber” (p. 350).
Para Eagleton,
a verdadeira resolução do conflito entre singularidade e universalidade é uma
solução que já encontramos em termos filosóficos. Devemos prestar absoluta atenção
ao estranho que porventura ocupe no momento o lugar do próximo e fazer
exatamente o mesmo com qualquer velho camarada que venha a aparecer em seguida.
A universalidade significa ser responsável por qualquer um, e não, por pura
impossibilidade, por todas as pessoas ao mesmo tempo.
Uma das
maiores tarefas do cristão é “amar o próximo como a si mesmo”. Para Eagleton,
essa afirmação, de que o próximo “repulsivamente estranho” deve ser amado “como
a si mesmo” é uma receita de trabalho suado, não de narcisismo. Isso porque
amar a si mesmo está longe de ser uma tarefa simples, visto que implica uma
aceitação do Real desfigurador que se acha no cerne da identidade de cada um.
Todos nós temos problemas de nos aceitarmos. Assim, para Eagleton, os mandamentos
gêmeos das Escrituras – amar a Deus e amar ao próximo como a si mesmo – devem ser
considerados inseparáveis: o amor ao próximo só é possível quando fundamentado
no Real. Este Real tem sua fonte na transcendência de Deus.
No
cristianismo não há conflito entre imanência e transcendência. O Yahweh do
Velho Testamento proclama que Seu povo O conhecerá por quem Ele é quando
acolher os imigrantes, cuidar dos desvalidos e proteger os pobres da violência
dos ricos.
Esse aparente
conflito entre imanência e transcendência é dissolvido:
“Há um toque
carnavalesco num credo para o qual o cosmos inteiro está em jogo na doação de
um copo d’água. O Filho do Homem desce majestosamente em nuvens de glória, só
para indagar de forma prosaica se você visitou os enfermos e alimentou os
famintos. Os messias convencionais tendem a fazer sua entrada na capital do
país em limusines à prova de balas, com batedores policiais, e não num burrego.
Jesus é apresentado como um salvador que é uma piada de mau gosto. No entanto,
o evangelho cristão vê em atividades corriqueiras como vestir os que estão nus
o antegozo de uma transfiguração da Terra, uma transfiguração que é uma sandice
para os franceses. O excepcional e o corriqueiro não são domínios separados,
como são para os discípulos de Lacan. O mundo material é o único locus de redenção.” (p. 392-93).
Essa
tensão entre imanência e transcendência surge no Evangelho de João como uma
tensão entre amar e desprezar o mundo. O mundo, no sentido do sistema de poder
dominante, trata mal os apóstolos da justiça e, por conseguinte, deve ser
rejeitado. O mundo, fruto da criação de Deus, é também aquilo que Deus ama. Visto
que é a sua própria criação, a dissidência política não deve ser confundida com
uma aversão ascética pelo carnal e pelo finito. O cristianismo é uma crença
extraterrestre: anseia por uma transformação da humanidade. “Mas o faz por sua
preocupação com os homens e as mulheres que efetivamente existem, e não pela
doce esperança de felicidade numa vida futura.”
Segundo
Eagleton, não é primordialmente em termos de sacramento que os cristãos
reencenam a abnegação de Cristo. Isso se dá, antes, por meio do amor
corriqueiro. É na compaixão e no perdão, e não sobretudo em rituais, oferendas
e códigos morais ou dietas complexas, que o amor de Yahweh se manifesta. E,
nesse campo humano, ele se manifesta, antes de mais nada, nos pobres e
espoliados. A era da religião é superada no Calvário: como observa o autor da Epístola
aos Hebreus, Cristo é o último sumo-sacerdote. A única oferenda que importa no
novo credo é um corpo humano alquebrado. É em torno dessa verdade monstruosa
que se deve construir um novo tipo de solidariedade.
Com
o cristianismo surge uma nova estima pelo comum. Os códigos de honra e glória
dão lugar a uma preocupação com o trabalho, o comércio, a sexualidade e a vida
familiar. O valor espiritual deixa de ser um assunto elitista e se torna parte
da existência cotidiana. Eagleton aponta que foi principalmente a Reforma, com
sua santificação da vida corriqueira, que desgastou as barreiras entre o
sagrado e o profano.
“Uma vez que toda forma de vida provém de Deus, o simples estar vivo é um
valor em si – uma visão que dificilmente seria compartilhada pela espécie de
casta de guerreiros pagãos para a qual a honra suplanta a mera existência.” (p.
401).
Eagleton
em certa parte, sempre procurando colocar em debate ideias de diferentes
autores e contratando-os com o cristianismo, trata do esforço de criar modos
para que os outros também obtenham realização. A ética e a justiça com relação
ao Outro deve também se basear na autorrealização dos outros. Qualquer tratamento
dos outros que não seja conducente à autorrealização deles – como por exemplo,
o estupro, a tortura e o assassinato - deve ser excluído.
E
critica aqueles que veem o cristianismo como uma ética que somente se importa
com a próxima vida. Sintam a ironia nestas linhas:
"Quando Slavoj
Zizek escreve que “a vida terrena, em última instância, [é] de importância secundaria”
para o cristianismo, como se os cristãos fossem criaturas sulfurosas e cheias
de penas, vindas de outra galáxia, ele se esquece momentaneamente de que a
salvação é coisa deste mundo, de que o corpo ressuscitado é tradicionalmente
visto como mais, e não menos, do que o corpo histórico e de que o reino de Deus
é tradicionalmente tido como uma Terra transfigurada, e não uma cidade estelar”
(p. 411).
Portanto,
essa terra necessita de redenção. Eagleton nos dá uma base sólida para a Missão.
Conclusão:
Por
fim, ele aponta que a caridade deve ser avaliada junto com a necessidade de justiça,
que faz parte dela. Ele cita Alasdair MacIntyre, segundo o qual “a caridade
para com o próximo vai além da justiça, mas sempre a inclui”. A responsabilidade
para com os outros não é absoluta e infinita, mas deve ser temperada com a
justiça, a prudência e o realismo.
Você pode não
concordar com todos os postulados no livro de Eagleton. Eu mesmo não concordei
com algumas afirmações suas. Sua posição marxista coloca algumas vezes o
socialismo como resposta ética máxima, o que pra mim não procede. Também ele
parte de uma visão Católica Romana da religião. Mas mesmo assim, ele nos traz
uma reflexão filosófica importante, mostrando que o cristianismo tem muito a
oferecer em termos de ideias práticas para justiça e ética, enfim, de ação para
com o Outro.
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