quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Ciência e Sociedade em Lewis

Este post traz algumas idéias de um projeto de pesquisa em andamento na UTFPR-Toledo, sobre o título "Esperança em tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)". Portanto, servirá apenas para apontar algumas ideias que serão desenvolvidas posteriormente. Que o leitor esteja ciente de que haverá alguns saltos temporais na história, pois se trata de um post que procura trazer um panorama.  

Meu interesse em C. S. Lewis vem de muito tempo, mas quando comecei a ler com mais profundidade sobre a visão de ciência e tecnologia em sua obra, percebi que existem muito poucos livros no contexto brasileiro que abordam o assunto. Da mesma forma, também há uma lacuna no Brasil de estudos sobre história da ciência e da tecnologia na primeira metade do século XX até meados desse século, enfim, demarcando o período de guerras mundiais.
Clive Staples Lewis (1898 – 1963) viveu em uma época muito complicada do ponto de vista geopolítico, mas também bastante dinâmica no que tange à ciência e à tecnologia. Foi justamente o casamento desses contextos de duas guerras mundiais com ia ciência e a tecnologia que fez surgir investimentos sem precedentes em inovações e invenções.
O que vou explorar é justamente a visão desses elementos a partir dos escritos de Lewis, principalmente em suas obras “A abolição do homem” e a “Trilogia Cósmica”, assim como cartas e ressonâncias em outras obras, buscando perceber críticas aos limites e possibilidades desses campos.
A busca por controle da natureza pelo homem trará avanços positivos para a natureza humana ou será sua destruição? São essas questões que Lewis procurou responder através da ficção e de trabalhos acadêmicos.

As promessas com relação ao progresso, obtidas através do avanço das ciências e da tecnologia, começaram a ser vistas como falsas após duas guerras mundiais. Durante a primeira metade do século XX, diversos intelectuais escreveram ficções apontando uma visão negativa do futuro: "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, publicado em 1932, "A trilogia Cósmica" de C. S. Lewis, escrita entre 1938 e 1945, "1984" de George Orwell, de 1949. O gênero chamado “distopia”, que vinha se fortalecendo com obras de H.G. Wells, tornou-se o favorito para se fazer pesadas – e criativas – críticas sociais. Lewis, o autor estudado aqui, conversou intelectualmente com esse gênero e seus autores; Orwell inclusive escreveu uma resenha do último livro da trilogia cósmica, “Uma força medonha”. Lewis também manteve uma profícua correspondência com Arthur C. Clarke logo após a finalização da trilogia; Clarke ainda estava desenvolvendo sua própria voz na ficção científica e viria a publicar sua primeira obra em 1956.
Lewis abordou em suas obras temas bastante contraditórios em sua época, e que continuam a ter importância nos dias atuais: engenharia genética, eugenia, armas nucleares, guerra, viagens espaciais, evolução, método científico. Sua crítica principal se centrava na ideia de que uma fé cega na ciência e na tecnologia levaria à abolição do homem, da natureza humana.

Contexto 

Lewis nasceu no dia 29 de novembro de 1898 em Belfast, Irlanda. Esta época era umas das eras mais dinâmicas; o século XIX foi o período em que a ciência colhia inúmeros frutos e cujo método se tornava a linguagem oficial de racionalidade. Realmente muitas melhoras foram sendo conduzidas inclusive redundando em questões práticas, como vacinas, tratamentos e descobertas. O mundo estava maravilhado com as façanhas da ciência. 
A tecnologia também trazia muitas vantagens para os países da Europa Ocidental principalmente após a explosão da Revolução Industrial inglesa no século XVIII, que não dava sinais de exaustão; muito pelo contrário, se expandia para outros países. A tecnologia proporcionou um desenvolvimento tal do capitalismo que começou a criar a necessidade por ampliação de mão-de-obra, de matéria prima e de mercados consumidores, um ciclo que foi responsável pelo surgimento dos imperialismos no século XIX.
Na virada para o século XX, o sentimento era de uma crença em favor do progresso: a civilização ocidental estava marchando inexoravelmente para frente, a humanidade estava amadurecendo, evoluindo e avançando. A confiança no progresso humano levava muitos a acreditar que, com a ajuda das tecnologias modernas, as guerras poderiam ser lutadas e vencidas com o mínimo custo financeiro e de vidas.
Até que, após crescentes perturbações, a 1a Guerra Mundial se inicia, à 28 de julho de 1914. 
Lewis estava com 16 anos. Logo ele foi destacado para lutar na Batalha de Somme, uma das mais sangrentas da história, em novembro de 1916; agora ele já contava com 16 anos. Esta batalha causou mais de 1 milhão de mortos ou feridos. Nesta batalha também estiveram presentes Tolkien e no front oposto, o também jovem Hitler (que saiu ferido). 
Um belo livro que trata da participação de Lewis e Tolkien na guerra, além de apontar suas ideias posteriores sobre ela é "A hobbit, a wardrobe and a great war" de Joseph Loconte.


Após a 1a Guerra, Lewis adentrou à sua vida acadêmica. Em Oxford conheceu J. R. R. Tolkien, que lhe apresentou as formas elementares do cristianismo. Em 1931, após conversas com Tolkien, Lewis se convence de que o cristianismo "é um mito verdadeiro". Em 1933, ele escreve sua primeira obra de cunho cristão, "O regresso do peregrino", demonstrando um rápida maturidade religiosa.  
Em 1938, ele publica o primeiro volume de sua trilogia "cósmica" ou trilogia de "Ramson": "Para além do planeta silencioso". 

 O fato era que a década de 1930 foi farta em obras de ficção científica, um estilo que vinha se desenvolvendo desde H. G. Wells, que influenciou Lewis profundamente, através de livros como "A máquina do tempo", "A guerra dos mundos" e "Os primeiros homens na lua". 
Não podemos deixar de mencionar "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, publicado em 1932, uma obra distópica, profundamente pessimista e profética sobre os maus usos da ciência, precisamente da biologia. 
"Para além do planeta silencioso" teria sido encaminhado após uma aposta entre Lewis e Tolkien, na qual Tolkien escreveria uma viagem no tempo e Lewis uma viagem no espaço. Tolkien nunca chegou a completar sua viagem no tempo "The lost Road" (J.R.R. TolkienHumphrey CarpenterChristopher Tolkien (eds.), The Letters of J.R.R. TolkienLetter 24, (dated 18 February 1938). 
Curioso que a personagem principal da trilogia de Lewis, Elwin Ransom foi baseado no próprio Tolkien. 

Como o próprio nome "Ramson" sugere para os leitores em inglês (significa "resgate"), o tema principal é a queda e a redenção cósmica. Apesar da trilogia se tratar de uma obra de ficção científica, com viagens espaciais e alienígenas, adjacente existe um forte debate teológico e crítica científica. Inclusive, algumas vezes passando despercebidos pelos leitores. 

Lewis ficou intrigado com a repercussão de sua obra e chega a escrever para um amigo sobre isso: 
Você ficará tanto triste quanto feliz de ouvir que de cerca de 60 comentários apenas 2 mostraram qualquer conhecimento de que a minha ideia da queda do Torto foi qualquer coisa menos invenção minhaQualquer quantidade de teologia agora pode ser contrabandeada nas mentes das pessoas sob a capa do romance sem que elas saibam.” (Letters of C. S. Lewis. Edited, with a memoir, by W. H. Lewis. London: GeoffreyBles, 1966.).
De qualquer forma, um ano depois da publicação desse livro, a 2a Guerra eclode, em 1o. de setembro de 1939. Lewis estava então com 41 anos e não foi para a guerra. Mas sua atenção não se desviou dos eventos bélicos: entre 1941 e 1942 ele transmitiu uma série de palestras pela rádio BBC, que viriam a compor o livro "Cristianismo Puro e Simples". 
Durante a guerra, os temas de ciência e tecnologia ficaram na mente de Lewis, e em 1943, durante os auspícios da guerra, ele dá uma série de palestras que viriam a ser a base da obra "A abolição do homem"; foram as "Riddell Memorial Lectures". 

Um dos temas básicos era a questão do valores objetivos e o cientificismo. 
Para Lewis, o controle tecnicista e cientificista na verdade era
"um poder que alguns homens possuem, e que por sua vez podem ou não delegar ao resto dos homens. Sob esse ponto de vista, o que chamamos de poder do Homem sobre a Natureza se revela como um poder exercido por alguns homens sobre outros, com a Natureza como instrumento.” 

Em 1943, ainda com a guerra em andamento, Lewis publica o 

segundo livro da trilogia: "Perelandra". Os temas principais tratados por Lewis aqui foram a questão da evolução, principalmente a noção de evolução criativa, que estava na ordem do dia. Esta era uma hipótese que afirmava que, no
curso da evolução, em alguns momentos  críticos surgiam algumas propriedades  inteiramente novas, tais como mente e  consciência, normalmente devido a um  rearranjo imprevisível das entidades que já existem. 
Aqui entramos em um debate extremamente importante no tempo de Lewis: a questão da evolução. Inclusive, há todo um debate em torno da ideia de se Lewis acreditava ou não na evolução, com proponentes dos dois lados arrastando Lewis para seu lado. 
À meu ver, pelas leituras que fiz de seus livros, artigos e cartas, entendo que ele não era contra a evolução. 
O que ele tinha era problemas em aceitar as tendências evolucionistas de sua época. Veja a opinião dele, exposta em um artigo:
"‘Evoluçãosimplesmente significamelhoramento’. E não se limita à organismos, mas se aplica à qualidades morais, instituições, artes, inteligência etc. Existe, portanto, no pensamento popular a concepção de que a melhoria é, de alguma forma, uma lei cósmica: uma concepção em que as ciências não dão apoio algum. Não tendência geral, mesmo para os organismos, de melhoramento. Não evidências de  que as capacidades mentais e morais da raça humana tenham aumentado desde que o homem se tornou homem. E não certamente nenhuma tendência para que o universo como um todo se mova em qualquer direção que devemos chamar de ‘bom’.” (Lewis, Christian Reflections, 1967).
A evolução sem Deus, como um processo cego, era para nosso autor uma impossibilidade lógica. Com a evolução naturalista, não haveria como explicar a mente e a moral.
À 2 de setembro de 1945, a guerra acaba com a rendição do Japão; em dezembro Lewis publica o último e mais denso livro da trilogia: "Uma força medonha". 


O título em inglês, "That hideous strengh" vem de um poema do século XVI, de David Lindsay, sobre a torre de Babel. 
Lewis procurou atualizar essa antiga busca do homem por autonomia. Neste livro ele apresenta uma forte crítica à fusão entre Estado e ciência, que em seu próprio contexto foi exemplificada pelos experimentos nazistas e pela produção da bomba atômica. 
No universo do livro, existe uma corporação chamada N.I.C.E, (National Institute for Coordinated Experiments, Instituto Nacional de Experimentos Coordenados, em português), que procura criar uma distopia, uma sociedade que opera em nome do progresso. 

A visão de ciência e tecnologia em Lewis
Lewis foi um profundo crítico dos problemas que a ciência e a tecnologia geravam e poderiam gerar. Ele questionava o materialismo de sua época, um futuro dominado por otimismo tecnológico e a coerção política através da tecnologia. 
Em um escrito marcante, em que ele falava sobre os males do progresso e a tecnocracia de seu tempo, ele comentava que  

“A nova oligarquia deve, cada vez mais, se basear nos conselhos dos cientistas, até que no final os políticos propriamente ditos se tornem meramente os fantoches dos cientistas. A tecnocracia é a forma que uma sociedade planejada deve tender.”(Lewis, C. S. Willing Slaves of the Welfare State. Is Progress Possible?).

 Ao mesmo tempo, outros não compartilhavam desse pessimismo. Aldous Huxley se expressava através de sua personagem Mustpha Mond da seguinte forma: 
“Culpe a civilização. Deus não é compatível com a maquinaria e a medicina científica e a felicidade universal. Você deve fazer sua escolha. Nossa civilização escolheu a maquinaria e a medicina e a felicidade.” (cap 17)
Para Lewis, o esforço mágico e o esforço científico são gêmeos. Para ele, a ciência moderna e a mágica tem um ponto comum na história, surgindo de esforços para entender e manipular a natureza, e eles têm mantido importantes e talvez inesperadas similaridades até o presente.
O sinistro Tio André no romance narniano “Sobrinho do mago” é tanto um mágico quanto um cientista. 
Os conspiradores do N.I.C.E em “Uma força medonha” almejam os poderes tanto da ciência quanto do mago Merlin em sua conspiração para fazer uma reengenharia da sociedade.
O historiador marxista Eric Hobsbawn dedica um capítulo de sua "Era dos extremos" aos "Feiticeiros e aprendizes", tratando das ciências naturais. Mesmo no tempo de Lewis, Arthur C. Clarke afirmou que “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Mas, apesar de compartilharem pontos de partida em comum, a ciência moderna, quando aplicada, busca remediar todos os problemas do homem. 
“Há algo que une a magia e a ciência aplicada (tecnologia) ao mesmo tempo que as separa da ‘sabedoria’ dos tempos antigos. Para os sábios da antiguidade, o problema principal da vida humana era como conformar a alma à realidade objetiva, e a solução encontrada era a sabedoria, a autodisciplina e a virtude. Para o homem moderno, o problema fundamental é como conformar a realidade aos desejos do homem, e a solução encontrada é técnica.” (Lewis, Abolição do Homem). 
Todos os problemas do homem, tristeza, vazio existencial, depressão, solidão, podem ser resolvidos através da técnica. Pelo menos na mente moderna. 
O pensamento de Lewis com relação à ciência e à tecnologia não ficaram relegadas à criar mofo nas abarrotadas bibliotecas inglesas. Suas ideias repercutiram entre autores importantes de sua época, como Arthur C. Clarke e J. B. S. Haldane. Nas cartas de Lewis conseguimos interceptar essas conversas. 
Detalhes que por essa época Clarke não havia publicado nenhuma história de ficção científica, pelas quais seria famoso. Teria Lewis o influenciado?
Da mesma forma, Haldane, um biólogo evolucionista, se sentiu incomodado com as afirmações de Lewis:
 Lewis deixa claro que ele não era contra a ciência, mas sim contra uma visão da ciência, o cientificismo.
É importante frisar que essa palavra, "cientificismo", aparece pela primeira vez durante a vida de Lewis, em 1936, na França (Hobsbawn, A era dos extremos, p. 525). 
Cientificismo seria a crença na aplicação universal da ciência. Este tema seria a batalha principal de Lewis. 
Por fim, vemos através dos seus escritos que Lewis não era um pessimista desesperançado; ele acreditava que havia esperança para a raça humana, mas a esperança estava fixada na redenção religiosa, ao invés de redenção tecnológica e no progresso científico.  
Espero nos próximos meses desenvolver essas ideias esboçadas aqui. Portanto, haverá mais posts e artigos nesse sentido. 

Bibliografia:

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