sábado, 5 de janeiro de 2019

Black Mirror – Bandersnatch. A ilusão de liberdade e o paradoxo de pac man.

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    Esse novo episódio de Black Mirror do canal de streaming Netflix, lançado em 28 de dezembro de 2018, apesar de não trazer nenhuma inovação no sentido de se poder escolher os caminhos à seguir no desenrolar da história (na própria Netflix há desenhos infantis com essa possibilidade), traz uma discussão bastante interessante da tecnologia, algo que sempre foi a proposta do programa.
    Quem assistir e não levar em consideração essa crítica, pode se frustrar, como podemos perceber por comentários na internet. A própria impossibilidade de se seguir certos caminhos em determinados momentos, caindo em um looping eterno, faz parte da crítica, como comentarei à frente. A minha resenha do filme vai ser baseada exatamente nessa crítica e um breve esboço da filosofia da tecnologia proposta por Black Mirror, que culmina nesse episódio, elementos que raros textos exploraram.
                O título do episódio, “Bandersnatch” faz referência ao jogo que Stefan está desenvolvendo baseado no livro de mesmo título, escrito por Jerome F. Davies. O livro é um catatau, com diversos caminhos para se escolher no desenvolvimento da narrativa, bem no estilo de livros “Escolha a sua própria aventura”, em que você, dependendo das escolhas, pode chegar à dezenas de finais diferentes (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro-jogo). Eu curtia muito esse tipo de livros na minha infância.
                O título Bandersnatch também faz referência à uma criatura presente nos livros de Lewis Carroll, como por exemplo, em “Alice através do espelho”. Essa criatura pode ser encontrada no mundo através do espelho, tendo muitas implicações, uma vez que “espelho” é muito importante no episódio e também em toda série, como o seu nome aponta.
O termo Black Mirror, quando relacionado à tecnologia, se refere à tela escura dos aparelhos quando estão desligados. O criador da série, Charlie Brooker, diz que

"Qualquer TV, qualquer LCD, qualquer iPhone, qualquer iPad – ou algo assim - se você apenas olhar para ele, parece um espelho preto, e há algo frio e horripilante nisso, e por isso foi um título tão apropriado para o show. "

A premissa de todo seriado é que a tecnologia pode espelhar e até amplificar os aspectos mais negros da natureza humana. Aqui podemos perceber a filosofia por trás de cada episódio de Black Mirror: um grande determinismo-pessimista tecnológico, que choca quem começa a assistir desde os primeiros episódios.
Assim, “Bandersnatch” pode querer inferir que há algo além, “Através do espelho”, do que meramente os episódios que assistimos em Black Mirror. Inclusive, a realidade se apresenta mais complexa, quando vemos referências à alguns episódios passados como meros jogos de vídeo-game (Ver Metalhead e Nosedive). A mensagem em “Alice através do espelho”, é que não podemos mudar o passado, mas aprender com ele e evitar erros futuros. É a mesma ideia que a psicóloga fala para Stefan em certo momento. Trata-se de um mundo espelhado ao do país das maravilhas, onde tudo ocorre ao contrário. O que os escritores de Bandersnatch, e de fato, de toda a série, parecem nos querer apontar é um mundo distópico extremamente pessimista, onde as consequências da tecnologia são levadas ao seu extremo. O aplicativo de dar notas às pessoas em “Nosedive” parece bobo no começo, mas leva à eventos catastróficos para a personagem principal, em sua busca hedonística.
Uma curiosidade:  os eventos do episódio começam em 9 de julho de 1984 e esta não é uma data aleatória. Houve um jogo real chamado Bandersnatch, mas ele nunca foi lançado. Foi criado por uma companhia de Liverpool, Inglaterra, chamada Imagine Software que faliu cedo. Na data em que inicia o episódio, a empresa foi oficialmente liquidada. (https://www.mirror.co.uk/film/black-mirrors-bandersnatch-game-real-13785695).
Bom, mas e quanto à filosofia da tecnologia de Black Mirror apresentada em Bandersnatch?
Em diversos momentos do episódio ouvimos a ideia de que o livre-abítrio é uma ilusão. A própria opção dos escritores deste episódio em deixar as pessoas escolherem para onde vai a história brinca, ironicamente, com essa ideia. Parece que temos opção, mas muitas vezes caímos num looping, e temos que voltar e escolher a única opção possível para continuar. Na verdade, em nossa sociedade tecnológica, parece que temos escolhas, mas muitas vezes as opções recaem em duas ou mais possibilidades. Comprarei iPhone ou Samsung? Posso decidir não participar em redes sociais? Não ter email? Ser um Theodore Kaczynski, o unabomber, e viver de forma alheia ao desenvolvimento tecnológico?
Muitos filósofos da tecnologia vão dizer exatamente que não há escolhas; a tecnologia decide por nós. Jacques Ellul, filósofo e sociólogo da tecnologia e quem eu considero a base filosófica de Black Mirror, aponta que não interessa o que queremos da tecnologia; se existe a possibilidade de algo ser produzido, ele será. A tecnologia determina nossa vida e, quando surge uma nova tecnologia, somos mudados e moldados em função dessa tecnologia. Veja-se como exemplo a prensa mecânica de Gutemberg. Antes dela, a leitura era algo comunal. Poucas pessoas sabiam ler, os livros eram raros, manuscritos e caros, assim, as leituras eram feitas em voz alta, em grupos. A medida em que a prensa foi sendo implementada, as pessoas passaram a ter mais acesso aos livros, agora relativamente baratos. A leitura tornou algo individualizado.
Outro exemplo: as mídias sociais. Elas determinam a maneira como nos comunicamos: de maneira rápida, curta e automática, estabelecendo o que consideramos ser uma comunicação efetiva. A velocidade da informação é estonteante, e queremos respostas no mesmo ritmo. Ao longo dos diversos episódios de Black Mirror vemos a degradação dos relacionamentos pessoais em função da aplicação da tecnologia. É uma visão bastante pessimista e diversas pessoas não concordam, tanto que o seriado e também autores deterministas como Ellul, não são unanimidades. A visão das consequências que a tecnologia mal usada pode acarretar é algo que nós não estamos dispostos a aceitar.
Mas a mensagem de Black Mirror e de filósofos deterministas, não é uma mensagem ludista, de que devemos destruir nossas tecnologias, é de que devemos cuidar com os excessos de seus usos, buscando que nossos aparelhos reflitam o que de melhor há na natureza humana, e não o pior.
O próprio looping no episódio de Bandersnatch, quando não conseguimos avançar devido à opções restritas nos aponta que o futuro tecnológico não é tão brilhante e com opções infinitas e maravilhosas. Na sociedade tecnológica temos certas opções limitantes e elas muitas vezes não nos levam à lugar algum. Há uma ilusão de liberdade que nos leva a aceitar o que tecnologicamente nos é oferecido.
Jacques Ellul em diversas obras comenta a ilusão de liberdade presente na busca do homo technicus, um ser que não sobrevive sem inovações tecnológicas. O que seria do homem sem suas ferramentas? A busca humana por criar tecnologias que lhe traga conforto e alívio de trabalho se transforma, na sociedade tecnológica, em uma busca de domínio sobre outros homens. As redes sociais querem ter controle sobre sua vida e a própria Netflix usa as escolhas dos usuários para saber que seriados e filmes fazem mais sucesso. Em um dos finais de Bandersnatch [spoiler alert], a busca do telespectador da Netflix por enredos mais emocionantes, com violência e ação, é parodiada.  
Você pode ter uma ilusão de liberdade ao escolher um eletrônico, ao escolher até o que assistir no amplo catálogo da empresa de streaming, mas, no fim, se se examinar com atenção, o que lhe resta são possibilidades limitadas. Alguém decidiu por você quais são as opções e escutar a música “x” ao invés da “y”, como no episódio, não é a maior das liberdades.
Algumas vezes na história, os seres humanos se insuflam na busca por autonomia e tem a ilusão de que possuem o controle de suas vidas. Veja-se o exemplo antiquíssimo de Babel, o exemplo maior de autonomia. Construiu-se uma torre alta, buscando unificação e autonomia, mas no fim o que acontece são desentendimentos.
A busca atual por transcender os limites humanos, usando a ciência e tecnologia como ferramentas também recai no mesmo mote babeliano: o homem buscando autonomia face às limitações da natureza. Só que ele não sabe realmente aonde isso vai dar, podendo acarretar em seres deturbados, como a versão reconstruída de Ash, que morre no episódio “Be right Back” da segunda temporada. O Ash reconstruído não é o mesmo Ash de antes; algo está faltando. Não sabemos as implicações à longo prazo de nossas tecnologias.
E é isso que os escritores de Black Mirror e filósofos como Jacques Ellul estão querendo apontar. A liberdade conquistada na sociedade tecnológica é uma falsa liberdade; se confiarmos plenamente de que os tecnólogos e cientistas sabem exatamente para onde vamos, sem nos importarmos com a ética, estamos fadados à sermos dominados pelas opções que a tecnologia faz.
Seremos como Pac Man, que pensa que com sua liberdade consegue sair do labirinto, mas na verdade está condenado a viver em uma realidade que se repete infinitamente. Como romper o ciclo? Talvez dando menos importância à tecnologia como um valor em si, e colocando valores humanos à frente: a tecnologia deve servir ao ser humano e não o contrário.  
Podemos ou não concordar com a filosofia de Black Mirror e os filósofos tecnologicamente deterministas, mas sua mensagem é premente: se continuarmos focando na tecnologia como um ídolo que nos liberta das amarras da natureza, estaremos condenados à um futuro distópico. Ou podemos atravessar o espelho e viver em um mundo para além da tecnologia; não sem tecnologia, mas em um mundo que contenha tecnologias que espelhe o melhor que há no ser humano. Precisamos dos pessimistas para nos fazer escolher o caminho certo. Analisando dessa forma a série, vejo Bandersnatch como o culminar da filosofia de Black Mirror, onde cada detalhe serve para apontar sua mensagem. Um episódio fantástico pra se rever diversas vezes e refletir.


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